São Paulo, sexta-feira, 12 de abril de 1996
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Saudades de Lévi-Strauss

DECIO DE ALMEIDA PRADO

Eu mesmo me espanto quando penso que faz 60 anos que me defrontei pela primeira vez com o prof. Claude Lévi-Strauss. Estava em 1936 prestando exames vestibulares para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, fundada dois anos antes e dirigida por meu pai. Na prova oral de sociologia (não me lembro se houve escrita) caiu um ponto que eu sabia razoavelmente bem, porque o havia estudado num cursinho feito por alunos da faculdade: Tarde e Durkheim. Falei sem interrupção durante uns dez minutos. Quando me calei, satisfeito comigo mesmo, a pergunta seca do meu examinador desconcertou-me um pouco: "Isso é tudo o que o senhor sabe sobre o assunto?". Tive de confessar que era. O meu interlocutor, que eu sabia chamar-se Lévi-Strauss, dispensou-me e me deu sete, que para os severos critérios franceses era uma boa nota.
Durante um ano e meio fui seu aluno. A minha formação, herdada do século 19, era a brasileira, em que a cultura geral tinha por base a literatura. Era nela que brilhavam médicos e advogados, além dos escritores vocacionais. Eu lera Machado de Assis com grande envolvimento pessoal, sabia de cor versos de Gonçalves Dias, Castro Alves e Olavo Bilac, conhecia todos os melhores trocadilhos de Emílio de Menezes, mestre de Oswald de Andrade nesse campo do jogo de palavras. Os modernistas, eu os conhecia mais de contato pessoal, numa cidade pequena e centralizada como São Paulo, do que através de seus livros, de edição reduzida e escassa circulação.
Agora, com os mestres franceses, de filosofia e ciências humanas, abria-se ao meu espírito um outro mundo, de acesso muito mais difícil -e não apenas pela diferença de língua-, com uma bibliografia que eu desconhecia e um modo de pensar com o qual não estava acostumado. O objeto do estudo ainda era o homem, como na literatura, mas num grau de abstração incomparavelmente maior: o homem pensando a si mesmo, pensando a sociedade, pensando o universo. O que dava um prazer imenso a mim e aos colegas sensíveis ao que se chamava antigamente estudo de humanidades.
Para o ensino paulista a nova escola, criada para ser o centro teórico da Universidade de São Paulo, representava um esforço de arejamento, de modernização, que não estava longe de lembrar o que, em relação às artes, significara a Semana de Arte Moderna, dez ou 15 anos antes. Não era por acaso que Oswald rondava a nossa Faculdade, em que por duas vezes tentaria entrar como professor (logo ele, o menos professoral dos homens), como também não foi por acaso que Mário de Andrade, então à frente do Departamento de Cultura Municipal, recebeu tão bem o jovem casal Lévi-Strauss. Por outro lado, quanto à geração brasileira mais jovem, não deixa de ser expressivo que os primeiros inscritos nas seções de filosofia, história e física hajam sido, respectivamente, João Cruz Costa, Caio Prado Jr. (não terminou o curso porque foi preso como comunista em 1935) e Mario Schenberg.
Dois professores lecionavam ciências sociais. Paul Arbousse Bastide, por antonomásia franco-brasileira o Bastidón (em oposição ao Bastidín de Roger Bastide), vinha da filosofia e encarava a sociologia pelo ângulo conceitual. A pergunta que nos fazia, em síntese, era a seguinte: o que vem a ser, exatamente, um fato social? Como distingui-lo do fato psicológico, do fato jurídico, do fato moral?
Lévi-Strauss, ao contrário, embora também tivesse passado pela filosofia, pendia para a ciência (ciências humanas, bem entendido, com natureza e métodos específicos), ou seja, para o concreto, para a observação direta e para a pesquisa de campo. O dado empírico, tão cultivado pela bibliografia de língua inglesa, seria o ponto de partida obrigatório mesmo para as interpretações pessoais mais elaboradas.
Um dos primeiros trabalhos que nos deu foi proceder a uma análise social da cidade de São Paulo por volta de 1820, tal como aparece nos documentos de época, que ele identificou quais eram e onde os encontraríamos. Para o curso que fez sobre as leis do parentesco nas sociedades primitivas, em vez de pedir digressões, distribuiu entre os alunos, como exame, uma série de árvores genealógicas individualizadas. Fornecia as regras sociais do grupo e indagava com quem se casaria determinada pessoa.
Há inteligências que nos ofuscam e nos fulminam. A de Lévi-Strauss pertencia à espécie oposta. Deixávamos a aula confiantes em nossa capacidade de entender o pensamento alheio, se não de formular o nosso próprio, com a agradável sensação de que em alguns pontos precisos diminuíra a nossa vasta ignorância. Seríamos capazes de reproduzir, prontamente e de memória, todos os pontos principais do que nos fora exposto. Havíamos começado, tendo o professor como guia, por fazer a "mise au point" de alguma questão: como ela se colocava em teoria e em que pé estava no pensamento moderno. Seguia-se a discussão, que acompanhávamos como se de fato estivéssemos participando dela.
Não creio exagerar dizendo que o método de raciocínio era o dialético: os prós, os contra, as conclusões provisórias. O professor não se valia de notas, falava como se improvisasse, mas sustentando com muita firmeza o fio de enredo que toda boa aula tem -e era essa lógica interna que nos prendia a atenção, porque não havia idéias soltas, exemplos dispensáveis, palavras de mais ou de menos. O monólogo fluía com a naturalidade de um diálogo, sem familiaridade mas também sem retórica, com aquela propriedade e elegância que constituíam a tradição universitária francesa, até que Sartre viesse a interrompê-la com os seus vocábulos germânicos, postos entre parênteses para nos intimidar e atemorizar -a filosofia alemã, ao que parece, como a poesia, não se traduz sem perder a sua melhor substância. A palavra, para Lévi-Strauss, comportava-se como o canal transparente que nos possibilitava enxergar o desenrolar da argumentação. Se alguma coisa aprendíamos era raciocinar. Não nos perdíamos nem mesmo nas sequências longas, porque elas se apresentavam bem articuladas, víamos as imbricações.
Essas reminiscências, e outras, vêm-me a propósito destas "Saudades de São Paulo", de Lévi-Strauss, que me devolvem de súbito à minha adolescência. Mas não sem alguma surpresa. A imagem que eu guardara de São Paulo, aos meus 18 anos de idade, era a da cidade dinâmica, a que mais crescia no mundo -"São Paulo não pode parar"-, a que se vangloriava de construir uma nova casa a cada hora. Até os bondes amparavam essa nossa vaidade, assegurando em dizeres ufanistas: "São Paulo é o maior parque industrial da América do Sul".
Vendo as fotos que Lévi-Strauss tirou em 1935 -e a fotografia infelizmente não nos deixa mentir- não é bem essa a cidade que contemplo com uma ponta de decepção. Lá estão, sem dúvida, a avenida São João, a nossa Broadway antes que o Minhocão a engolisse, o Martinelli, sentinela avançada e solitária do progresso, os bairros residenciais que significavam a nossa glória. Mas lá estão, igualmente, mesmo no centro, a pobreza, o atraso, a caipirice, as boiadas atropelando os bondes, os carnavais de rua tristes, as casinholas do começo do século, os esgotos correndo a céu aberto. Não que tenhamos resolvidos alguns desses problemas. Mas os expulsamos para mais longe, onde a nossa vista não alcança, para o que chamávamos então de subúrbios e ganharam o nome atual de periferia.
Lévi-Strauss analisou São Paulo com a curiosidade e a seriedade que lhe são peculiares. Descreveu-a em "Tristes Trópicos" como uma cidade que cresceu nos primeiros tempos, que no caso são os seus três primeiros séculos, encravada entre duas modestas correntes de água, o Tamanduateí e o Anhangabaú. Nos breves textos que acompanham as fotos de "Saudades de São Paulo", nota com a perspicácia habitual que no Rio de Janeiro os pobres refugiavam-se nos morros, "enquanto em São Paulo se situavam nos baixios, pela razão inversa de que os riachos engrossados pelas chuvas constituíam ali um sério inconveniente". O que ele não sabia em 1935, como nós paulistanos ignorávamos, é que esses grotões, essas pouco habitadas depressões de terreno, esses vales às vezes perdidos entre dois bairros prontos e acabados, serviriam no futuro, que se fez presente, para a abertura de importantes e salvadoras avenidas.
Por exemplo, para ficar no meu pequeno universo ecumênico, a 9 de Julho, entre o Bexiga e Cerqueira Cesar; a Pacaembu, entre Higienópolis e Perdizes; a Rebouças, entre os Jardins e Pinheiros; a 23 de Maio, entre a Liberdade e a Brigadeiro Luís Antonio; a Sumaré, entre o Sumaré e o Pacaembuzinho. E aproveito a ocasião para acrescentar que as várzeas vislumbradas ao longe por meu antigo professor, quase fora dos limites urbanos, margeando o Tietê e o Pinheiros, que se enchiam de água no verão e de campos de futebol no inverno, também tiveram fins insuspeitados. São as nossas famosas marginais, que tentam em vão viabilizar o trânsito. Os vazios de ontem são os cheios de hoje. A verdade é que São Paulo não parou de crescer, agora para nosso desespero, ameaçando atingir proporções incompatíveis com a vida organizada e civilizada. E não só na parte material. Em 1935, como está consignado em "Tristes Trópicos", possuíamos especialistas para todos os ramos do saber, porém um só em cada setor, que todos conheciam e apontavam com o dedo. Em 1996 são dezenas, mas perfeitamente anônimos, como convém a uma grande cidade.
Se recordo bem o meu primeiro encontro com o prof. Claude Lévi-Strauss, não me esqueci dos últimos. Oferecemos a ele, como despedida, um daqueles chás a que ele se refere, achando graça em nossa candura provinciana, de alunos que não se revoltavam criticamente contra os professores, antes procurávamos travar com eles relações mais íntimas e pessoais. Havíamos aprendido em suas aulas que a cordialidade brasileira não passava de um traço social como os outros, não tendo raízes afetivas mais profundas. Mas o fato é que estávamos gratos e até mesmo um pouco comovidos. Fui incumbido de saudá-lo em nome do nosso pequeno grupo, o que procurei fazer dentro das regras do gênero, daquilo que então se intitulava, com uma ponta de ironia, oratória de sobremesa (eram frequentes os almoços e jantares de homenagem). Não tive qualquer dificuldade em augurar-lhe um futuro luminoso, que todos achávamos indefectível, dadas as suas superiores qualidades de inteligência e trabalho. Mas não me ocorreu, e creio que a ninguém, que ele se tornaria em breve uma das vozes mais ouvidas e admiradas entre todas as que no mundo moderno se dedicam às cogitações sobre o homem.
Antes de partir para o interior do Brasil, Lévi-Strauss fez uma conferência, sobre os seus projetos imediatos. Ia estudar os nossos indígenas porque a sociologia tinha de se voltar para o mais simples, como faz a biologia em relação à célula. Enganavam-se, porém, os que pensavam que essas sociedades, tidas como primitivas, não apresentavam, a exemplo da nossa, um alto grau de complexidade. Não devíamos, de resto, enquadrá-las em esquemas evolutivos que dão por comprovada a nossa superioridade. O método comparativo é bom para compreender melhor o outro, não para diminuí-lo.
Foi a última lição que de viva voz recebi dele -e não das menores. Se há "Saudades de São Paulo", são recíprocas, de parte a parte.

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