São Paulo, sexta-feira, 12 de abril de 1996
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O duplo ventre da escravidão

MARIA HELENA P.T. MACHADO

Antropólogo africanista de grande destaque, diretor de pesquisa no Cnrs em Paris, Claude Meillassoux é conhecido no meio acadêmico brasileiro sobretudo pelo seu livro "Mulheres, Celeiros e Capitais". Publicado originalmente na França em 1986, a edição brasileira do livro "Antropologia da Escravidão" torna acessível este importante estudo da constituição da escravidão na África, de seus modos de produção e reprodução e das estruturas sociais que tanto permitiram sua gênese quanto foram por ela moldadas.
Abordando questões fundamentais relativas aos temas da escravidão e do próprio estatuto da instituição escravista na história, a obra de Meillassoux contribui de forma significativa ao debate mais atual a respeito dos modos de funcionamento e reprodução da escravidão, bem como às discussões teóricas e historiográficas capazes de delimitar a essência do ser escravo, frente à variedade das condições históricas e arranjos sociais observáveis nas diferentes sociedades que dela se utilizaram. Neste sentido, o livro se integra a toda uma corrente que, nas últimas décadas, renovou radicalmente as abordagens sobre a escravidão.
Embora a obra de Meillassoux tenha se baseado numa análise relativa à área do Saara sudanês -região do continente possuidora de uma história bastante característica, dado seus contatos com as rotas de comércio muçulmanas, que remontam ao período da chamada idade média africana e à precoce constituição de impérios militarizados-, o objetivo do autor é generalizar suas conclusões sobre as estruturas escravistas para todo o continente africano. De fato, mais do que um estudo sobre as condições históricas específicas, que sustentaram a diversidade de formas que tomou a instituição escravista na África ao longo do tempo, nesta obra Meillassoux apresenta sua teoria geral da escravidão, já esboçada em 1975, em livro organizado por ele mesmo.
Conhecido como renovador do marxismo, Meillassoux, em "Antropologia e Escravidão", retoma as discussões sobre o modo de produção escravista e, a partir de uma visão teórico-estrutural que releva os aspectos mais imutáveis da opressão escravista, constrói o modelo do ser escravo. Escorando-se numa análise estrutural e funcional das sociedades agrárias de parentesco e contrariando determinadas concepções da gênese da escravidão nas sociedades africanas, que a conceberam enquanto derivada destas mesmas sociedades tradicionais, de agricultura de auto-subsistência e baseadas nos laços de consanguinidade e afiliação, conceitua o autor o ser escravo como a antítese do parente, isto é na figura do estrangeiro, carente tanto de laços com os antepassados, quanto desprovido da capacidade de gerar uma progenitura socialmente legitimável. Neste sentido, a sociedade escravista é percebida como antinômica à sociedade de parentesco. Ora, estrangeiro, morto socialmente pela ausência de passado e, por tal, incapaz de gerar laços para o futuro, o escravo estaria totalmente nas mãos de seu senhor, sendo, então, por este, totalmente alienado, coisificado e nulificado.
Assim, é a partir de uma concepção idealizada da escravidão, pois toma o substrato jurídico no qual ele se assenta e que proporciona ao senhor o poder absoluto sobre o escravo como realidade absoluta, Meillassoux descreve os pilares de funcionamento da sociedade escravista. Concepção idealizada porque, apesar de reconhecer as limitações das abordagens jurídicas e formalistas para a análise da complexidade social de qualquer instituição, o autor acaba por conceituar como escravidão orgânica apenas aquelas relações que se encaixam em seu modelo teórico da exclusão absoluta. A contrapartida disto é considerar como escravidão acidental ou não-orgânica toda uma variedade de arranjos escravistas observados pelo próprio autor em sua área de pesquisa e que demonstram a diversidade, complexidade e constantes transformações da escravidão na realidade social do Saara sudanês.
A primeira parte do livro, sob o título "O Ventre - Dialética da Escravidão", gira em torno da conceituação do escravo como o antiparente, o morto social em todas as modalidades e variedades de aspectos que tal situação de nulificação social possa ter gerado. Uma das questões de maior interesse aqui abordada é a que se refere às conexões existentes entre a escravidão africana e o tráfico de escravos atlântico, pois aí operava claramente uma discriminação de preferências. É a partir desta análise que o autor conclui que apenas a constante escravização de novos contingentes proporcionava a sobrevivência do sistema. Desta forma, o modo de produção escravista seria determinado pelo seu modo de reprodução, que envolvia o constante domínio, conquista e exploração das sociedades agrárias de parentesco pelos estados militarizados escravistas. Movimento sem fim, a guerra tanto alimentava a escravidão que por sua vez viabilizava toda a estrutura militarista necessária para a manutenção das expedições escravistas.
Na segunda e terceira partes do livro, "O Ventre de Ferro e Dinheiro", Meillassoux descreve e analisa as estruturas aristocráticas militarizadas que alimentavam os estados despóticos escravistas e a escravidão comercial que conectava os contingentes de escravos sobretudo aos mercados internos africanos. Mais uma vez percebe-se que, para o autor, a definição de um modelo de funcionamento se sobrepõe à preocupação de apreender e integrar as nuanças dos arranjos históricos por ele mesmo verificados ao seu quadro analítico. Assim, analisa ele estes dois braços do sistema escravista, isto é, aristocracia militarizada e mercadores, como compondo duas sociedades distintas e excludentes, geradoras de duas formas opostas de acumulação e estruturação da escravidão. No entanto, a descrição do próprio Meillassoux de como a escravidão se entranhou na estrutura social e de poder de ambas as sociedades demonstra os nexos íntimos existentes entre dois segmentos interdependentes na manutenção da escravidão.
Finalmente, a descrição da variedade de papéis assumidos pelos escravos no decorrer do livro faz com que o leitor, para além do próprio modelo de análise normativa proposto, possa apreciar de fato a riqueza de formas e acomodações desenvolvidas pela escravidão nas diferentes sociedades.
Apesar do caráter exageradamente formalista da análise marxista-funcionalista de Meillassoux, "Antropologia da Escravidão" é um livro importante de um dos mais renomados antropólogos dedicados ao estudo da escravidão na África, vindo a enriquecer a parca bibliografia disponível ao leitor brasileiro sobre o assunto. Acrescente-se que a presente edição passou pela revisão técnica de um dos únicos especialistas brasileiros em escravidão e tráfico de escravos na África, o que garante a correção da tradução ora apresentada, sugerindo mais uma vez a pertinência de integrar este livro aos debates brasileiros a respeito do tema da escravidão e do tráfico.

Maria Helena P. T. Machado é professora do departamento de história da USP e autora dos livros "O Plano e o Pânico: Escravidão e Movimentos Sociais na Década da Abolição" (Edusp/Ed. UFRJ) e "Crime e Escravidão" (Brasiliense).

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