São Paulo, domingo, 14 de abril de 1996
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Ascensão e queda de Trótski

Biografia mostra obsessão de Stálin de eliminar o rival

RICHARD PIPES
ESPECIAL PARA "NYT BOOK REVIEW"

Na época da morte de Lênin, em 1924, Leon Trótski (1879-1940), visto por amplos setores como responsável pela administração do golpe de outubro de 1917 e a vitória da guerra civil, era o mais conhecido integrante do círculo de Lênin e por isso se presumia que seria o herdeiro do líder morto. Mas quem conhecia a situação mais de perto sabia que ele não tinha chance alguma contra Stálin.
Para começo de conversa, Trótski demorara para se juntar aos bolcheviques, fato que aconteceu apenas em 1917; até então ele os atacara implacavelmente, zombando de seu líder. Esse histórico o desqualificava para integrar a "Velha Guarda" bolchevique, que distribuía entre seus integrantes os cargos mais altos no governo.
Outro fator que pesava contra Trótski era sua personalidade. Trótski via a si mesmo como a consciência da Revolução, e jamais perdia uma oportunidade de criticar seus colegas. Lênin ignorava a maioria de suas recomendações e costumava relegar os longos memorandos com que Trótski bombardeava o Comitê Central aos arquivos. Um documento que recentemente deixou de ser considerado sigiloso revela que em março de 1921 Lênin disse numa reunião de comunistas que Trótski "não entendia nada" de política.
E, em último lugar mas não menos importante, havia o obstáculo representado pelo fato de Trótski ser judeu. Trótski insistia que suas origens étnicas nada significavam para ele; que não era judeu, e sim "internacionalista". No entanto, reconhecia que não importava qual fosse sua auto-imagem, a população o enxergava como judeu, e que essa percepção, levando em conta o ambiente de anti-semitismo prevalecente até mesmo nos círculos comunistas, o impedia de chefiar o Estado soviético.
Até o surgimento desta biografia, a obra mais respeitada sobre a vida de Trótski era um estudo excessivamente elogioso em três volumes, de autoria de Isaac Deutscher, publicado entre 1954 e 1963. Dmitri Volkogonov utilizou os ricos materiais encontrados nos arquivos russos. O resultado é um retrato muito mais realístico do homem que Deutscher exaltava como "profeta" infalível. Embora o livro de Volkogonov não seja destituído de falhas -é mal organizado e demonstra excessiva dependência de fontes obtidas em arquivos-, é indispensável para uma compreensão da espetacular ascensão e queda de Trótski.
Volkogonov, que morreu em dezembro passado aos 67 anos, foi uma figura notável por seus próprios méritos. Ele perdeu os pais no terror stalinista dos anos 30, quando seu pai foi fuzilado e sua mãe, deportada para um campo de concentração. Apesar desse passado, viveu uma rápida ascensão no Exército soviético, como especialista encarregado de guerra psicológica e ideológica. Em meados dos anos 80, Volkogonov, militar de alto escalão, foi nomeado diretor do Instituto de História Militar e voltou sua atenção ao passado.
Em pouco tempo começou a ter dúvidas e a expressar idéias heréticas, que levaram Mikhail Gorbatchov a demiti-lo. Suas apreensões em relação ao comunismo se intensificaram após agosto de 1991, quando, depois do golpe militar frustrado que resultou na dissolução da União Soviética, Boris Ieltsin o nomeou seu assessor militar. Esse cargo abriu a Volkogonov as portas de todos os arquivos históricos russos, incluindo o Arquivo Presidencial, ainda hoje inacessível a pesquisadores independentes. Os frutos de suas pesquisas foram as biografias de Stálin (1991), Trótski (1992) e Lênin (1994).
A versão inglesa da biografia de Trótski tem cerca de três quartos do original, mas não omite nada de importante. O livro consiste de duas partes: a primeira relata a juventude de Trótski, sua carreira antes de 1917 e suas conquistas como um dos líderes da Rússia Soviética; a segunda, sua rápida queda do poder, seguida pelos anos que passou no exílio, implacavelmente caçado por Stálin.
A primeira parte faz poucas contribuições novas, embora valha a pena observar que o autor, um militar profissional, menospreza a contribuição de Trótski para a vitória bolchevique na guerra civil, chamando-o de "diletante" em assuntos militares.
O núcleo do livro está em sua segunda parte, que é ao mesmo tempo original e de leitura fascinante. A versão apresentada por Trótski de sua luta contra Stálin é conhecida há muito tempo. Volkogonov é o primeiro historiador a lançar luz sobre o lado soviético do conflito. Citando as ordens dadas por Stálin à polícia secreta e os relatórios desta enviados a ele, Volkogonov fornece um quadro abrangente do conflito que terminou com o assassinato de Trótski.
Trótski e Lev Sedov, seu filho e assessor, disseram e escreveram frequentemente que o regime de Stálin precisava ser derrubado, e o próprio Stálin assassinado. Eram afirmações irresponsáveis, levando-se em conta que Trótski e sua facção se resumiam a poucos milhares de emigrados e simpatizantes estrangeiros, totalmente infiltrados por agentes de Stálin, e que seus seguidores no interior da União Soviética estavam sendo sistematicamente mortos.
Com base nos documentos citados por Volkogonov, porém, fica evidente que essas ameaças vazias, rapidamente comunicadas ao Kremlin, infundiram pavor no coração do tirano paranóico. Stálin ficou obcecado com a idéia de livrar-se de seu rival; suas ordens de "liquidar" Trótski, emitidas pela primeira vez em meados dos anos 30, não foram motivadas primordialmente pelo desejo de vingança, como se acreditava anteriormente, e sim pelo desejo de salvar a si mesmo e a seu regime.
Constata-se agora que as absurdas acusações de "trotskismo" lançadas contra os réus nos processos de 1936-38 e no banho de sangue de 1937 foram inspiradas pelo temor irracional, porém genuíno, da subversão interna. O fato de ter demonstrado isso constitui uma das mais importantes contribuições feitas por Volkogonov.

Tradução de Clara Allain.

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