São Paulo, domingo, 14 de abril de 1996
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As guerrilhas pela "ocultura"

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Somos, ainda hoje, uns desterrados em nossa terra." Com essa frase lapidar, inscrita logo no início do clássico "Raízes do Brasil", o professor Sérgio Buarque de Holanda assinalou muito mais do que a agenda da sua geração, fixando de fato o núcleo elementar da consciência intelectual brasileira.
Por efeito da colonização, um grupo de europeus se deslocou de seu território de origem, vindo instalar-se numa terra tropical e em meio a gentes de outras culturas que lhes eram totalmente estranhas. Como essa experiência de colonização era inédita, não havendo pois modelos europeus que ela pudesse reproduzir nos seus desdobramentos cotidianos, todos os expedientes da reprodução das condições de vida tinham que ser inventados e improvisados, no embate diário com as contingências e os elementos exóticos. O anseio, entretanto, de manter e estender sua supremacia induzia os colonizadores a se apegarem ferreamente à memória e à mística de suas origens européias. Daí a divisão apontada pelo professor Sérgio Buarque: pés e mãos numa margem do Atlântico, cabeça na outra. E, tem toda razão, assim continuamos até hoje.
Mas e se pensarmos que o mundo mudou e continua mudando vertiginosamente? Se considerarmos que a presente revolução tecnológica, os novos circuitos de comunicação e os grandes movimentos migratórios criaram um efeito chamado de globalização que, assim como encurta as distâncias no espaço, também intensifica a sincronia temporal em escala planetária? E, então, ficamos mais "brasileiros" ou mais "europeus" ou nenhuma das anteriores? Ou será que alguns ficam "ainda mais brasileiros", na medida mesma que outros se tornam "ainda mais europeus"? A questão está longe de ser retórica ou irrelevante, visto que as mudanças históricas que estamos vivendo são amplas, profundas e irreversíveis. E o que elas trazem consigo, assim me parece, não é o retorno da velha questão da identidade, mas talvez a oportunidade de se guiar por outras constelações.
O período crucial de gestação da consciência cultural brasileira foi naturalmente o do romantismo. Feita a independência em relação a Portugal, as elites locais pretendiam demonstrar que constituíam uma entidade inteira, completa, madura e singular. Daí, num esforço de auto-afirmação, a adoção de títulos nobiliárquicos com nomes indígenas, a fundação de academias e institutos históricos e geográficos. O indigenismo, como se sabe, constituiu a alma do movimento romântico brasileiro. Por certo que os Cecis, Peris e Juca Piramas eram índios de araque, caricaturas europeizadas correndo num cenário de ópera. Mas a intenção, pelo menos, era clara.
Um segundo marco nesse processo de formação da consciência cultural pode ser fixado a partir da experiência traumática de Canudos, testemunhada e relatada pelo aturdido Euclides. Na senda da crítica que já vinha sendo elaborada pelos integrantes da chamada Geração de 1870, ele revela em 1902, num livro cujo impacto repercute até hoje, que existia no seio do país uma gente estranha e completamente ignorada pelas elites litorâneas: o povo brasileiro. Esse gesto de Euclides, de voltar-se do litoral ao sertão, se tornaria o imperativo intelectual para as gerações subsequentes. Seu fruto mais refinado em termos de sublimação artística está na obra de Guimarães Rosa.
Muito curiosamente, esse mesmo Guimarães tem um pequeno conto que assinala com prodigiosa clareza esse dilema dos intelectuais brasileiros, chamado "A Terceira Margem do Rio". É a história de um camponês que, sem qualquer motivo ou explicação, decide um dia, por pura invenção, tomar de um barco e manter-se nele em meio a um rio, sem jamais retornar a uma margem ou à outra. Aliás, o dilema não é só dos intelectuais. Como se viu desde o romantismo, o Estado exerce um papel decisivo na fixação e no encaminhamento da questão da identidade. Quem levantou a bola do carnaval, das praias, do futebol, do samba, do papagaio e do vatapá foram os modernistas, mas quem deu a cortada foi Getúlio Vargas. O popular se tornou o avatar do nacional e vice-versa, para efeito das artes, da educação e das urnas.
Na Europa, igualmente o romantismo foi o esteio do processo de formação e consolidação dos Estados nacionais. Esse elo rígido unindo Estado e cultura se manteve ademais como a contrapartida das mobilizações chauvinistas ao redor das duas grandes guerras. A primeira ruptura de fato, em amplas proporções, com esse sistema de tutela cultural, veio com os movimentos de 68, e sua ressonância mais radical e tardia em 76.
A partir daquele momento ficaram nitidamente distintos e em confronto três níveis. O da cultura oficial, a partir do Estado e suas instituições, o da cultura de massas, assentado no mercado, e o de uma cultura que pretendia resistir a ambas, autodenominando-se contracultura. Nesse momento, desligando-se de sua tradicional vinculação estatal, a contracultura pretende representar as forças sociais emergentes: as vítimas do imperialismo, os segmentos marginalizados, as minorias e as gerações que se negavam a aderir aos valores conformistas da Guerra Fria e do consumismo. A ironia da história é que, ao longo dos anos 80 e 90, a cultura de massas acabou dragando e assimilando os outros dois níveis, amalgamando-os no circuito da cultura-mercadoria. Do outro lado do Atlântico e desse, em sintonia global.
O sonho acabou? E agora, José? De fato, a história não acaba, ela muda, as coisas se transformam. O drama é que elas mudam agora numa celeração e numa intensidade desconhecida em qualquer outra época. Um dos problemas com isso é que tanto a elaboração de um quadro cognitivo para entender uma situação nova, quanto de um quadro de valores para orientar a ação nessas novas condições, levam tempo para amadurecer, serem testados e transmitidos.
Nesse descompasso entre a reflexão e a velocidade da transformação histórica, o pensamento corre o risco de elaborar sobre o obsoleto. Todos corremos o risco de nos cegarmos pela solidez das nossas convicções e de ficarmos presos no arcabouço complexo de nossos conhecimentos. A tentação maior é a de aderir e pegar carona, antes de se esfalfar inutilmente, correndo atrás do bonde. Mas então, seria possível, ou desejável, acelerar a imaginação? Não creio. Parece, porém, que ela vai sendo forçada a se tornar mais plástica. O caso todo, por sinal, tem muito a ver com plasticidade e matéria plástica.
Em primeiro lugar, não sobram dúvidas que a dimensão cultural assumiu um relevo preponderante no encaminhamento das tensões sociais e das transformações históricas. Como indicaram Adorno e Horkheimer, "hoje no mundo tudo é mediado pela cultura, até o ponto em que mesmo os níveis político e ideológico devem ser desemaranhados de seu modo primário de representação que é cultural". Daí sua conclusão de que "tudo na sociedade de consumo assumiu uma dimensão estética".
Mergulhando ainda mais fundo no cerne da questão, o professor Fredric Jameson analisa que a dinâmica dessa nova dimensão ampliada da cultura é regida pela germinação do que ele chama de uma "libido escópica", ou seja, uma erotização do olhar, que galvaniza todas as lutas do poder e do desejo, fixando-as em representações visuais. Ressalte-se que nessa metamorfose da libido, o desejo permanece fixado apenas e tão-somente na superfície visível da imagem, se desvinculando de qualquer envolvimento com a substância ou a profundidade do real. Portanto, se na atualidade tudo é cultura e a cultura se condensa em redes intrincadas de imagens, a prática política por excelência é a crítica cultural, exercida como o enfrentamento do poder aliciante e agenciador da imagem.
Esse novo quadro impõe uma reformulação das estratégias analíticas e discursivas da crítica. É na raiz desse realinhamento do campo crítico que estão novas atitudes como as "marginal sciences", a "art damage" ou o "popomo". Ele é que está por trás da literatura não-temática difundida pelos cyberzines ou das explorações com música sem estrutura e sem desenvolvimento. Essas iniciativas não são articuladas entre si, naturalmente, mas compõem no seu conjunto frentes de confrontação cultural que, na sua palpitação de fundo, são, em geral, qualificadas como tecnopagãs.
A explicação para essa esdrúxula fusão do futurista com o arcaico está no anseio de fundo dessas criaturas recalcitrantes de recompor, por meio da apropriação indébita dos recursos tecnológicos, o equilíbrio da Trindade Órfica: Eros, Gaia e Caos. O que fica de fora, estando no meio entre esses dois extremos, é toda a tradição euclideana, aristotélica, platônica e suas variantes místico-racionais. As novas fronteiras teóricas são as ciências não-lineares, contingentistas e holísticas, cujos marcos de referência são o químico Ilya Prigogine, o físico David Bohm e o biólogo James Lovelock.
Um outro modo de se referir a essa germinação crítica difusa, ainda mais revelador de seus impulsos e intenções, é encarando-a como ocultura. Nada a ver, desde já, com ocultismos ou enfatuações afins. Nada a ver também com New Age, visto que essa gente anti-social prefere se apresentar como New Wedge, especialistas que são em infiltrações corrosivas. O que a ocultura significa é a guerra de guerrilhas contra o poder mistificador da imagem. Ocultura é o esforço deliberado para operar conceitualmente fora do enquadramento no império da imagem.
Não se trata portanto de esconder ou encontrar algo escondido, mas de formular experiências sociais e simbólicas independentes da mediação centralizadora da visão e dos efeitos perversos da imagolatria. Se pois, como vimos acima, a cultura se desvinculou da tutela estatal no contexto de 1968-76 e passou a representar a sociedade, no final dos 90 sua palpitação mais viva se manifesta nessas comunidades dispersas, cujo vínculo em comum consiste na hostilidade contra a hegemonia conformista da cultura de consumo.
Postos os termos dessa situação no Brasil, o que eles nos ilustram? Creio que a questão da identidade, assim como a do multiculturalismo, não é de definição, mas de multiplicação. Houve um momento, como no exemplo de Canudos, em que a questão posta pelos intelectuais era a de dar visibilidade aos que eram relegados à indiferença e ao esquecimento. Hoje, a questão mais drástica é lutar contra o aprisionamento das criaturas e grupos em imagens estereotipadas, que pretendem resumir em si mesmas e de uma vez por todas o lugar e o destino daqueles nela enquadrados.
Nesse sentido, não há imagens do Brasil ou imagens da Europa (ou dos Estados Unidos ou do Primeiro Mundo, como quer que seja), como se fossem projeções autênticas de espelhos gigantescos. O que há são sistemas de imagens do Brasil e sistemas de imagens da Europa, que podem ser articulados e multiplicados para compor a retórica de um presente congelado da imagem, que nega o presente fluido, carregado das tensões da história.
Assim, a questão da identidade como se formula agora, diferentemente do momento do professor Sérgio Buarque, alimenta a iconolatria, em vez de avançar a crítica. Se éramos uns "desterrados na nossa terra", somos agora uns retratados no lugar e no papel que nos cabe nesse latifúndio.

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