São Paulo, domingo, 14 de abril de 1996
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A escala desmedida de Babel

No espaço superficial da atualidade não há mais centro

NELSON BRISSAC PEIXOTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em plena era da globalização, o que vem a ser "ter raízes nacionais"? Para artistas brasileiros contemporâneos, vivendo em metrópoles onde as arritmias da produção industrial e dos sistemas de comunicação são mais gritantes, nacional não se define pelo que se tenha de mais brasileirinho. Mas pela capacidade de tirar partido de uma condição específica no concerto das contradições internacionais, operando as diferenças, os intervalos e as desproporções no interior do sistema, que às vezes aqui se fazem mais evidentes.
Esses artistas indicam como alguém, embora localizado, consegue ser universal. Situação que nada tem a ver com o apego a um lugar, a raízes provincianas. Trata-se de uma posição geográfica, uma inserção no mapa dos blocos e fluxos mundiais. Aqui, a geografia substitui a história, que fundava a tradição. No mundo da circulação generalizada, do predomínio da informação, não se tem mais passado. Apenas uma pontuação geométrica num campo sem profundidade. Onde tudo é movimento.
Dinâmica que tende a abolir toda posição referencial, a convencional relação centro-periferia. Neste espaço superficial, atravessado por vetores, não há mais centro. Como um tabuleiro em que todos os pontos são intercambiáveis. Certas regiões do globo engendraram megalópoles muito maiores, mais populosas e diversificadas do que as grandes cidades tradicionais. Cidades simplesmente diferentes. Onde a coexistência caótica e fragmentada de diferentes sistemas de produção, transporte e informação, numa escala descomunal, engendra uma complexidade específica a estes países.
Essas cidades são paisagens, não lugares a que se possa pertencer, fincar raízes. Nelas se habita para testemunhar sua estranheza. Como a Torre de Babel, que desarticula toda linguagem, presentificando o inominável. A Torre figura aquilo que a tempestade indica na história da pintura: a equivalência de projeto e ruína. Numa só construção, o intuito e sua impossibilidade. Destino manifesto de nossas metrópoles, síntese de nossa experiência da modernidade.
A questão não é mais a metamorfose do local em universal, a antiga dialética do particular e do geral, que incentivava obras de caráter regionalista e nacional. Aqui trata-se de obras que se utilizam da sua condição localizada para terem espectro global. Artistas que, trabalhando nas entrelinhas da dissonância industrial nacional, que alia o mais moderno ao mais precário, conseguem dar uma dimensão para seus trabalhos que seria difícil em países social e economicamente mais sistemáticos. Porque têm as feições e a escala da nossa desmedida metropolização.
Espremidos entre sistemas de articulação das diferenças sob o mesmo código (CNN, Internet) e a pulsão a se esquecerem, cada vez mais sem história, sem qualquer possibilidade de apelo ao tradicional, como podem estes artistas almejar ao universal? Duas modalidades de percurso poderiam ser delineadas. Por um lado, os dois videomakers brasileiros de maior penetração no exterior são os que mais operam na intersecção vídeo/TV/cinema/artes plásticas. São os que mais transitam entre as mídias e os sistemas existentes de difusão, aproveitando a porosidade característica de países como o Brasil, onde as instituições e os "métiers" ainda não são claramente estanques.
Os últimos trabalhos de Sandra Kogut -que se notabilizou por "Parabolic People" (vídeo realizado a partir de instalações feitas em várias partes do mundo), fez recentemente um curta-metragem e dirige uma série de TV na Globo- incluem uma instalação-intervenção numa cidade do interior francês, com uma obra feita para os circuitos internos de TV de seus locais públicos.
Já no primeiro trabalho, Kogut manifestava habilidade em registrar as diferenças locais, de acento, cor, ritmo e expressões, na corrente contínua dos fluxos parabólicos. Depois, a mesma sensibilidade transpareceria no curta-metragem, na apreensão da personagem de subúrbio carioca, no seu kitsch contaminado pelos meios de comunicação. Uma atenção para as nuances do processo pelo qual a mídia vai conformando o comportamento, as relações amorosas e a paisagem através do mundo.
Eder Santos, convidado para a próxima Bienal de SP, ganhou inúmeros festivais de vídeo e montou instalações em vários importantes museus do mundo. Ele acaba de realizar com financiamento europeu um longa-metragem rodado em filme, montado em vídeo e revertido para película, explorando radicalmente no plano da linguagem essa combinação de recursos técnicos. Um trabalho muito original no cruzamento das mídias, que só encontra comparação na obra do diretor Peter Greenaway.
Aqui, o trânsito entre os diversos suportes imagéticos, resultando numa imagem-vídeo densa e porosa, encontra sua afinidade na arenosa paisagem mineira. Imagens atravessadas pelos gestos recorrentes de figuras suspensas no tempo: o trote do cavaleiro, o andar do carro de boi, o passar do trem. Imaginário tradicional que é mobilizado para sustentar o mecanismo de sucessão e superposição das imagens. Recurso a um lugar imemorial para trabalhar o movimento, cada vez mais lento e descontínuo, dissolvendo as figuras num chão de terra eletrônico.
Importa menos o grau de sofisticação técnica que essa polivalência possibilita às produções desses artistas, embora evidentemente desconsiderem as antigas ideologias "low tech" que já dominaram o cenário artístico nacional. Interessa a capacidade de transitar entre as linguagens e suportes, de recorrer aos mais diferentes aportes. Graças a essa transitividade, que lhes permite combinar procedimentos estéticos e técnicos distintos e utilizar o imaginário proveniente de diferentes culturas locais, eles têm elaborado obras de grande exuberância e criatividade. Inclusive quando chamados a criar no exterior.
Outra modalidade de itinerário através das condições nacionais contemporâneas pode ser o percorrido por Guto Lacaz e Rubens Mano. Em particular, por meio das obras criadas por ocasião do projeto "Arte/Cidade", que tiveram significativo impacto crítico, considerando-se que são trabalhos específicos para a cidade de São Paulo e no contexto de um evento à margem do calendário internacional. Esses artistas conseguiram colocar algumas das interrogações mais recorrentes da arte contemporânea, como as da ótica e da luz, acrescentando um comentário pela escala e a interatividade que é próprio da experiência metropolitana brasileira.
Nossas cidades, talvez mais do que as outras jamais fizeram, confrontam o artista com a grandeza e o magnífico. E também com o horror. Aqui as questões de escala têm a ver com a relação com o que não tem medida, o que escapa a toda pretensão de compreensão e ordenamento. Situações que compelem a intensas experiências de incomunicabilidade e anonimato, pano de fundo do periscópio (Lacaz) e do jato de luz que fugazmente iluminava o passante solitário no vale do Anhangabaú (Mano).
Mas estas obras aproveitavam também sua situação para se converterem em intervenções de caráter urbano. Numa escala raramente permitida aos artistas da "land art", operando uma reflexão sobre a arte para lugar específico, sobre a natureza contemporânea da obra de arte. Não é só a escala que importa aqui. É a maneira de conceber a intervenção. Trata-se da capacidade de mobilizar lugares, instituições e recursos em escala urbana (mesmo quando é o caso de meios de comunicação), o que está no cerne daquelas obras.
É uma situação peculiar: artistas contemporâneos brasileiros podem chegar a trabalhar em uma importante variedade de situações, mas faltam recursos e sobram dificuldades para a plena utilização do que se tem à disposição. Tudo é, a princípio, possível. Mas nada funciona. É o preço da desorganização institucional que ao mesmo tempo permite projetos mais ousados. Tem-se de trabalhar num horizonte mais diversificado de opções técnicas e materiais.
Assim, aos poucos, vão-se delineando dispositivos e procedimentos típicos de uma outra cultura metropolitana, que nada tem a ver com a tradição verde-amarela. Ao contrário, caracteriza-se por explorar a complexidade desse tipo de cidade. A arte brasileira atual torna-se universal -o que também implica um modo específico de transitar nos dispositivos internacionais de difusão e crítica- ao brotar da experiência mais metropolitana do país.

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