São Paulo, segunda-feira, 15 de abril de 1996
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A voz de Deus

JOÃO SAYAD

Fico meio confuso e desanimado quando penso nos debates atuais sobre economia.
Nos jornais, a discussão ou não ocorre ou se radicaliza muito rapidamente.
Na universidade, o debate é respeitoso e politicamente correto, mas as grandes divergências são evitadas.
Todas as escolas de pensamento ou tendências têm seu espaço, mas em salas diferentes e com audiências diferentes. Homeopatas respeitam, mas não falam com alopatas.
Mais recentemente, os economistas abriram mão de saber a verdade. Todas as versões são boas versões, formas diferentes de contar um caso, a verdade não existe.
Há dez anos, por exemplo, os países do Sudeste Asiático eram apresentados por muitos professores norte-americanos como casos de sucesso do modelo liberal: economias abertas, sem intervenção governamental e crescendo rapidamente.
Hoje sabemos que as economias do sudeste asiático têm estratégia de crescimento baseadas em exportações -o que provavelmente permitiu a muitos chamá-las de liberais.
Mas têm também planos nacionais de desenvolvimento, crédito orientado para setores e atividades prioritários e governos autoritários. Taiwan fez a primeira eleição para escolha de presidente somente este ano, quase 50 anos depois da sua fundação.
Os países da região apresentados como modelos liberais são apenas economias voltadas para a exportação, com governos autoritários e estratégias nacionais de desenvolvimento muito bem desenhadas e implementadas.
Agora no Brasil, com o fim da inflação, as mazelas do Primeiro Mundo começam a ser discutidas.
A era pós-moderna para a qual nos preparamos não é dourada como pensávamos: o desemprego é elevado, os sistemas de saúde e educação estão em crise no mundo inteiro, os salários não crescem, os sistemas de previdência precisam ser reformados, os déficits públicos são imensos, as taxas de juros, muito altas.
Na semana passada, Clóvis Rossi trouxe para os jornais brasileiros a contradição maior deste mundo em que estamos entrando: o mundo é capaz de produzir mais, poderíamos trabalhar menos e viver mais.
Entretanto, o desemprego aumenta, exige-se mais anos de trabalho da força de trabalho mais velha que não consegue empregos.
Há 20 ou 30 anos que os economistas alardeiam que Keynes morreu. Se estivesse vivo estaria extremamente preocupado com o funcionamento do novo mercado financeiro internacional, desregulamentado, especulativo e descoordenado.
E nunca as políticas keynesianas foram utilizadas tão intensivamente, com os resultados previstos. Só que a prioridade política é a inflação e não o desemprego.
Hoje, boas notícias sobre vendas ou nas estatísticas de emprego e consumo geram altas nas taxas de juros norte-americanos.
Nada mais keynesiano, apresentado como a vitória do monetarismo, das expectativas racionais ou do novo classicismo.
O governo Reagan, por exemplo, conseguiu um enorme sucesso ampliando o déficit público (com grandes despesas de juros) para aumentar o nível de atividade; sobrevalorizando o dólar, para combater a inflação (mais ou menos como nós) com uma retórica baseada na curva de Laffer, no livre mercado e no liberalismo, que rapidamente ganhou o mundo e a cabeça de todas as lideranças.
Estamos discutindo as reformas da Constituição. Os defensores da reforma afirmam que estamos nos livrando de coisas antigas, do fisiologismo, do populismo e nos preparando para nova era de crescimento, prosperidade e justiça. Não compartilho de tanto entusiasmo.
Temos de reformar a Constituição porque os tempos mudaram -o que era bom, ficou velho e o que era justo, se tornou impossível. Não há como resistir, temos de nos acomodar ao novo mundo. Mas o novo mundo promete coisas boas e coisas más que não sabemos resolver.
A limitação dos juros a 12% ao ano em termos reais, por exemplo, é criticada em toda parte, como irreal, inviável e anacrônica. Mas em 1945, o presidente do Federal Reserve anunciava em alto e bom tom que os juros seriam limitados ao nível máximo de 2,5% ao ano para estimular os investimentos.
A economia mundial cresceu a taxas bastante elevadas nas três décadas seguintes.
Juros não deveriam ser assunto de Constituição. Mas a idéia faz muito sentido do ponto de vista macroeconômico e ético embora seja uma idéia inviável para os anos em que vivemos. Quem está certo -a Constituição ou os reformistas?
A discussão não tem ajudado muito. O debate está sempre carregado de mitos, slogans e ideologia. É sempre moderno demais e chega à unanimidade muito rapidamente.
Será que os economistas e os tecnocratas é que sabem das coisas?
Será que a voz do povo é a voz de Deus?
Ou será que a voz do povo repete o que dizem as elites na era das comunicações rápidas e da indústria cultural?
Talvez a verdade só apareça bem mais tarde, muito tempo depois que as coisas aconteçam e quando não interessem mais.

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