São Paulo, domingo, 21 de abril de 1996
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O sertão vai virar mar

LUÍS NASSIF

O massacre dos sem-terra, no Pará, traz dois alertas: um óbvio, outro pouco percebido.
O óbvio é o absurdo de se enviar para o local de confronto policiais armados de metralhadoras.
Os episódios do Carandiru e do Paraná já deveriam ter servido de lição para a não-repetição dessa imprudência.
Por mais que confrontos açulem os ânimos, a selvageria do episódio não encontra atenuantes nem em ambientes de guerra.
O mínimo que se espera agora é que esses selvagens -especialmente os oficiais que comandavam a operação- sejam submetidos a julgamentos em tribunais civis.
Ultra-radicais
O dado pouco percebido é a maneira preocupante com que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra vai gradativamente se excluindo do jogo político, e fugindo ao controle de suas lideranças mais sensatas.
A partir de 1968, a exclusão política da oposição levou ao aparecimento da luta armada.
À medida que a ditadura foi se esboroando, grupos de oposição passaram a galgar espaços cada vez mais amplos dentro dos mecanismos oferecidos pela democracia formal.
A classe mais intelectualizada juntou-se em torno de entidades da chamada sociedade civil.
O movimento sindical ressurgiu agressivo, conquistando, por méritos próprios, seu espaço político. Derrotados pela repressão, os grupos ultra-radicais foram se abrigar em diversas entidades, tentando conquistar seu controle político.
Foi emblemática a tentativa recente de tomada do controle do PT por uma aliança de grupos ultra-radicais.
A estratégia falha porque, à medida que os novos atores passam a ocupar espaços políticos, principalmente a partir do momento em que conquistaram os primeiros cargos executivos relevantes, e que Lula tornou-se possibilidade concreta para a presidência, houve natural esvaziamento das lideranças mais radicais -as viúvas da luta armada.
Reduziram-se as desconfianças em relação à democracia, a alternância no poder tornou-se possibilidade concreta, antigos líderes radicais amadureceram e se integraram ao jogo institucional. E os ultra-radicais não encontraram mais espaço para seu jogo dúbio.
Com o amadurecimento político e econômico do país, aliás, cada vez mais estruturas orgânicas -como centrais sindicais e partidos políticos- vão ocupar o espaço institucional das chamadas entidades representativas da sociedade civil -OAB, ABI e Igreja-, que cresceram no vácuo político dos últimos 15 anos.
Virar mar
Hoje a CUT e a Força Sindical, o PT e demais partidos de esquerda, são personagens atuantes no jogo político. Quanto mais aprofundar-se a democracia, mais importância terão e menos espaço haverá para os grupos ultra-radicais.
É por aí que entra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Há o risco concreto de que se torne o palanque ideal para a aglutinação dos ultra-radicais expulsos das instituições políticas urbanas.
Não há nada que justifique a selvageria da polícia. Mas as excepcionais imagens da repórter da Globo foram claras, mostrando os sem-terra partindo para o confronto, armados de paus, foices e, alguns deles, de revólveres.
Os gatilhos das metralhadoras foram acionados por comandantes irresponsáveis, mas também por lideranças que não se incomodaram em colocar velhos, mulheres e crianças na linha de fogo. Não se trata de transformar vítimas em algozes.
Mas de chamar a atenção para uma situação política complexa.
Se não houver responsabilidade de lado a lado -do Executivo, do Judiciário e de instituições como a Igreja (que tem na reforma agrária trunfo político relevante)-, o sertão vai virar mar. E lideranças de aparente bom senso -como Rainha- vão acabar engolfadas pelos radicais.

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