São Paulo, domingo, 21 de abril de 1996
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Protestos contra privatização agora mobilizam América Latina

JORGE CASTAÑEDA

Milhares de manifestantes lotam avenidas de La Paz, na Bolívia, protestando contra a privatização -"capitalização" é o termo usado no país- da empresa petrolífera estatal, Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos. Enquanto isso, as Forças Armadas transmitem ao presidente Sánchez de Lozada a inquietude diante da venda das estradas de ferro e de petroquímicas.
No Paraguai, as principais centrais sindicais promovem uma greve geral de um dia, certamente para exigir aumentos salariais, mas também para pedir um referendo sobre as privatizações propostas pelo governo, exatamente como aconteceu no Equador há um ano e no Uruguai há dois.
No Brasil, o presidente da equipe de privatizações do governo anuncia o adiamento da venda da companhia de eletricidade do Rio de Janeiro, alegando condições de mercado inadequadas. A venda da Companhia Vale do Rio Doce, jóia da coroa da privatização no Brasil e possivelmente de toda a América Latina, demorou muito mais do que o previsto, e ninguém sabe quando ela acontecerá, se é que ainda irá acontecer.
E, no México, campeão mundial das privatizações em grande escala e em pouco tempo, os planos do governo de vender os quatro grandes complexos petroquímicos da Pemex e de permitir a participação de empresas estrangeiras na constituição das novas administradoras de fundos de aposentadoria enfrentam, de repente, forte oposição... não por parte da oposição, mas do próprio partido governante, o PRI.
Será que algo anda mal no paraíso privatizador que foi a América Latina há apenas dois anos? Supondo que realmente esteja ocorrendo um retrocesso nesse campo, várias razões o explicariam. Algumas são comuns a todos os países da região; outras dizem respeito especificamente a determinadas nações. Mas todas possuem um denominador comum: as privatizações realizadas até agora ou não funcionaram ou, apesar de seu êxito, trouxeram benefícios muito inferiores aos esperados, e, hoje, com a elevação dos custos de novas vendas, o saldo é muito menos atraente do que antes.
Na primeira categoria, seria preciso incluir várias empresas de diferentes países: desde Aeroperu, Aerolíneas Argentinas, Viasa e Mexicana de Aviación, na área do transporte aéreo, até os bancos mexicanos e algumas tentativas de privatização de fundos de pensão. O que se vê é que as empresas vendidas continuam perdendo dinheiro e que as empresas que as compraram procuram se desfazer delas.
É o caso dos fundos de pensão no Chile: os rendimentos dos poupadores começam a cair, e o espetacular aumento da poupança interna não se deve aos fundos, mas aos esforços das empresas.
Ou, como no caso das rodovias privadas no México, o molho sai mais caro do que as almôndegas, e o Estado se vê agora obrigado a assumir a dívida, a manutenção e, daqui a pouco, a operação das estradas, algumas das quais são, de qualquer modo, úteis. Mas outras não se encaixam nessa descrição: é o caso da estrada México-Acapulco, que custou US$ 3 bilhões e terminou sendo um elefante branco digno da melhor época do populismo mexicano.
No que diz respeito aos bancos mexicanos, o fracasso tem sido estrondoso, não apenas nem necessariamente devido à privatização, mas ela passou a ser associada sempre à terrível crise do sistema financeiro mexicano desde a desvalorização da moeda nacional em dezembro de 1994.
Em outros casos, as privatizações funcionaram relativamente bem (Teléfonos de México, as siderúrgicas de ponta no Brasil, as duas companhias telefônicas argentinas e as empresas de água potável em Buenos Aires), mas tampouco constituíram a panacéia que muitos alardeavam. E as sociedades latino-americanas, fartas -com razão- do mau Estado que as governou e naturalmente ansiosas por testemunhar os milagres prometidos, hoje começam a mudar de ânimo diante das promessas não cumpridas.
O que aconteceu? Em alguns casos, os atores políticos e econômicos perceberam que as empresas que perdiam dinheiro quando eram públicas continuam perdendo agora que são privadas, mas que ao mesmo tempo são indispensáveis para o bom andamento do país. É o caso, por exemplo, de quase toda a infra-estrutura latino-americana. Existem rotas aéreas e rodovias que simplesmente não são rentáveis, mas são necessárias; as perdas precisam ser socializadas.
Em outros casos -e isso é cada vez mais frequente e explica, entre outras razões, o atual descrédito das privatizações no México-, a corrupção descoberta nas vendas tem sido descomunal, e os ganhos de alguns resultaram em perdas importantes para muitos outros. Uma das alegações feitas a favor da entrega ao setor privado de diversas estatais foi justamente o combate à corrupção, geralmente vinculada ao setor público. Agora as sociedades se dão conta de que a corrupção associada às próprias vendas, e portanto à gestão privada, é semelhante ou pior do que a anterior.
Proliferam dúvidas sobre a origem dos fundos com os quais foram comprados os ativos estatais; abundam os sussurros que pronunciam a palavra proibida: "narcotráfico".
Finalmente, dois fatores adicionais alimentam as dúvidas e a relutância de crescentes setores das sociedades latino-americanas. O primeiro inclui o problema do marco regularizador; não é a mesma coisa privatizar no Reino Unido, onde a autoridade regularizadora tem séculos de experiência e honestidade, e na Venezuela, onde a corrupção é endêmica -como no México- e a capacidade fiscalizadora do Estado brilha por sua ausência secular.
O padrão socioeconômico anglo-saxão, sejam quais forem suas vantagens e seus inconvenientes, implica um Estado fraco como proprietário, mas poderoso como poder regulador ou fiscalizador dos agentes econômicos e dos atores sociais.
Em segundo lugar, já foi comprovado como muitas empresas privatizadas procederam: o tão falado "downsizing", isto é, o enxugamento e a redução de pessoal, visando promover a eficiência e a competitividade. Em muitos casos, os resultados são dignos de elogios: as empresas mais produtivas conquistam mercados, aumentam suas vendas, pagam mais impostos e chegam a criar novos empregos que substituem os anteriores, improdutivos, que se perderam. Na maioria deles, no entanto, a redução de funcionários se produz, mas não são produzidos benefícios para ninguém. E, em troca, tornam-se intoleráveis as consequências do desemprego em massa em sociedades que não têm redes sociais.
Assim, surge a pergunta: não seria preferível conservar os empregos criados com tanto esforço, mesmo que a um custo social elevado, se a alternativa é o desemprego e a delinquência?
Boa parte do processo de privatizações na América Latina é hoje irreversível, para o bem ou para o mal. Não existe marcha a ré na maioria dos países e das empresas, e nem deveria existir. Mas as lições dos erros cometidos, dos abusos e das improvisações devem ao mesmo tempo ser aplicadas às vendas futuras -que, quando destituídas de lógica, podem ser anuladas- e servir para corrigir o que for possível, quando possível. As modas são péssimas conselheiras; hoje, quando o afã privatizador se desvanece, é o momento de fazer as contas, evitar a persistência imotivada e recordar que até a moda parisiense muda com o passar das estações.

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