São Paulo, quinta-feira, 25 de abril de 1996
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Massacre: missão cumprida

PAULO SÉRGIO PINHEIRO

As mortes dos 19 trabalhadores sem-terra em Eldorado de Carajás foram execuções deliberadas e seletivas: resultado visado por cilada preparada pela Polícia Militar. Com a colaboração dos fazendeiros e empresários que a emprega nas horas de folga como seus pistoleiros e guardas.
Na curva de estrada entre Eldorado de Carajás e Marabá estão acampados 1.500 sem-terra com suas famílias.
Queriam ônibus e víveres para prosseguirem na sua marcha até o Incra, em Marabá. Numa tarde, à luz do dia, sem nenhuma negociação prévia, transportados pela "Transbrasiliana", bloqueiam, com os dois ônibus dessa empresa, a estrada em dois pontos e em clássica operação de torniquete atacam os manifestantes pelos dois flancos.
Os policiais que vinham de Parauapebas jogam bombas de efeito moral e atiram com balas de festim. Os manifestantes revidam. Apenas essas cenas foram filmadas. Depois, do outro flanco, vindos de Marabá, os policiais atiram com balas de verdade, para abater.
Como fica evidente pelos laudos de necropsia revisados pelo legista dr. Nelson Massini, por determinação do ministro da Justiça Nelson Jobim. Entre os 19 mortos, 12 foram abatidos com tiros certeiros, com revólveres 38, desfechados contra a cabeça, o tórax e órgãos vitais. Com grande precisão. O número de projéteis encontrados nos corpos é reduzido: no máximo quatro, desfechados por revólveres calibre 38 e não por rajadas de metralhadora.
Três, como o jovem Oziel Alves Pereira, alvejado na nuca, foram executados com tiros à queima-roupa e pelas costas. Sete foram mortos por instrumentos corto-contundentes, foices e facões retirados dos manifestantes, o que indica que já estavam dominados.
Depois das execuções, segundo os depoimentos que colhi e casas que visitei, invadiram domicílios, destruíram móveis e objetos. Ali se refugiaram mulheres e crianças, obrigadas a deitar no chão e postas para correr para o mato sob tiros dados para o alto.
Os soldados puseram fogo nos barracos do acampamento, destruíram seus pertences e víveres, cortaram redes de dormir, roubaram dinheiro.
Como a cena dos crimes foi desfeita na retirada dos corpos do local do massacre, além das necropsias resta o exame pericial das armas e cápsulas recolhidas. Faltam recursos para uma perícia mais acurada, que vai requerer cooperação externa.
Mas os boletins de entrega das armas aos soldados foram criminosamente destruídos, tornando quase impossível identificar quem usou qual arma. O inquérito policial militar conta com a supervisão de um procurador de Justiça. Mas suas conclusões serão examinadas por uma auditoria militar, garantia de impunidade.
O arbítrio marca a ação de muitos governos dos Estados: o massacre é regra da resolução do conflito. Devemos ver além das invasões e das manifestações dos sem-terra e não culpar as vítimas porque não têm a submissão plena dos carneiros sacrificiais.
Sua mobilização é consequência direta da brutal concentração de terra no Brasil -1% dos proprietários detêm 44% das propriedades rurais e 53% detêm 2,6%- e da inexistência de um efetivo Estado de Direito nas áreas de conflito. A desapropriação da fazenda Macaxeira, para assentamento dos sem-terra de Eldorado de Carajás, é necessidade emergencial.
O presidente Fernando Henrique Cardoso exigiu com clareza que desta vez os culpados sejam punidos. A presença do Exército na área, cooperação bem-acolhida pela população, assegurando os serviços de varredura de corpos, foi um sinal dessa vontade política.
Para impedir que mais um massacre fique impune, o governo federal deve tornar lei o juízo civil sobre os crimes comuns dos policiais militares. É preciso criar um tipo de crime federal de direitos humanos. E declarar inadimplentes, como já sugeriu o ministro Nelson Jobim, os Estados que não debelem a impunidade desses crimes.
Caso o governo federal não afirme sua presença na apuração de graves violações de direitos humanos, as instituições policiais e judiciais no sul do Pará continuarão dominadas pela empreitada e pelo conluio com os interesses dos donos de terra.
E a impunidade estará garantida em Eldorado de Carajás.

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