São Paulo, sábado, 27 de abril de 1996
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"Rei Lear" ameaça o mito Paulo Autran

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Desde "Macbeth", Ulysses Cruz, diretor agora de "Rei Lear", parece enfrentar os clássicos shakespearianos com dificuldade. Não foi assim com "Péricles", que, no entanto, não pode ser qualificado como clássico. É das obras menores de Shakespeare -e suas falhas antes estimularam Cruz.
Ele chamou a si a criação e fez um dos grandes espetáculos da última temporada, carregado de atrações -externas ao texto. Espelho exato de "Hamlet", "Rei Lear" é uma tragédia clássica em que a criação não pode se dar externamente, mas sobre cada verso, cada palavra, à qual cabe valorização.
Como paralelo, vale mencionar a despreocupação de outro diretor de belas imagens, Victor Garcia. Ele, ao que relata, por exemplo, Raul Cortez, cuidava da "mise-en-scène". Os intérpretes que cuidassem das palavras -sem o trabalho de mesa, como se diz, ou sem o roteiro de ações.
"Rei Lear", que estreou quinta, é encenada assim. Os atores, do protagonista ao coro, estão sem direção, sem saber para onde seguir em meio aos esforços cenográficos -brilhantes- de Cruz e Hélio Eichbauer. Entre a bela estrutura de metal de duas rampas (como na embarcação de "Péricles") e o aprofundamento de um verso, a prioridade é a primeira.
Paulo Autran, em especial, deixa escapar o que seria sua grande atuação da maturidade. Após anos em produções menores, "Lear" seria a confirmação do mito para uma geração que não viu dele o que tanto falam. Mas não: está tão apagado quanto na montagem recente de "A Tempestade".
É como se o ator se negasse à personagem. Lear, de comportamento errático, que "ficou velho antes de ficar sábio", merecia identificação maior com o intérprete, incapaz, ao que parece, de aceitar a tragédia que não é só de Lear.
O rei, em momento pueril, julga as três filhas pelo que dizem dele -e deserda Cordélia, mais jovem e de amor mais sincero, mas incapaz de adulação. Orgulhoso, detona a tragédia, ao escolher Goneril e Regan como herdeiras de seus domínios. Não demora para que traiam o pai, abrindo a sequência de horrores que vai acabar com corpos empilhados no palco.
O ator falha precisamente no desenho do rei orgulhoso e pueril. Está distante, alheio, como se não acreditasse na encenação, na personagem. Cresce depois, já rei louco, mas não como desdobramento da tragédia e sim em interpretação circunscrita, fechada -como se nem a mesma personagem fosse, como se nem tragédia fosse.
Autran não chega a representar a tragédia de Lear. O mergulho do ator é físico, certamente extenuante. Mas o envolvimento emocional é superficial, como comprova a constrangedora cena final em que tem Cordélia nos braços e se esforça por chorar, derrapando pelo melodrama. Não há tragédia, não há catarse -em particular, para o mito Paulo Autran.
Talvez seja, é o que parece, reação à encenação. É compreensível reagir a uma tragédia shakespeariana que comece com pantomima, e mais, uma pantomima que reúne figurino celta com tai chi chuan. Ou ainda, que limita de tal maneira os solilóquios. Mas também aí, na reação ao relativamente jovem Ulysses Cruz, Autran poderia buscar alimento para a personagem. Não o faz.
Lear à deriva, ele que é a âncora da tragédia, as demais personagens se dissolvem. Cordélia (Rachel Ripani) é de tal maneira infantilizada nos gestos, na inexpressividade, que poderia perder todas as falas, sem prejuízo do atual estado do espetáculo.
Goneril (Karin Rodrigues) e Regan (Suzana Faini) têm atuação estereotipada, dicotômica, deixando escapar as deixas de justificação do mal que fazem e resultando antes em bruxas malvadas do que em personagens trágicas, elas próprias. Suzana Faini têm a vantagem de se fazer ouvir.
O restante do elenco, que mal se destaca do coro, traz um Bobo (Marcos Suchara) e um conde de Gloucester (Hélio Cícero) incapazes de compor dupla com Lear, indistintos -quando não desperdiçando as one-liners shakespearianas. Merecem menção, talvez, a sinuosa interpretação física de Edgar (Roberto Matos) e passagens da ardente fidelidade do conde de Kent (Bartholomeu de Haro).

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