São Paulo, quinta-feira, 2 de maio de 1996
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Uma lei e cinco obscenidades

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Concebida na Itália renascentista, o estatuto da patente industrial buscava mobilizar investimentos para produção de bens por meio da concessão de direito exclusivo de uso, manufatura ou venda de um produto por um período limitado de tempo.
Esse tipo de monopólio reproduzia o que já se fazia no comércio marítimo, onde privilégios semelhantes já eram concedidos com a finalidade de remover as naturais reservas relativas a negócios arriscados. A restrição da concessão da patente a inovações teve também como finalidade disciplinar o processo, e não apenas a outorga de um prêmio ao inventor. A humanidade nunca foi assim tão romântica.
A patente é fundamentalmente um incentivo ao investimento produtivo e não uma retribuição pelo esforço heróico do inventor. E a prova disso é que em muitos países da Europa, por exemplo Bélgica, Suíça, Espanha, Itália, a patente é concedida àquele que a solicita, sem qualquer indagação sobre o autor da invenção. Aliás, a legislação que acaba de ser aprovada pelo Congresso Nacional também atribui ao primeiro solicitante o direito da patente.
Quando a questão patentária, já no século passado, se tornou uma questão internacional, esse princípio, o de que é principalmente um incentivo à produção, se manteve, apesar dos ponderáveis desequilíbrios entre nações. A patente, quando internacionalizada, amplia as diferenças entre as nações no que diz respeito à riqueza.
Empresas ou nações mais desenvolvidas despendem mais em pesquisas do que as menos desenvolvidas. Com isso inovam mais, com o que obtêm mais patentes e, consequentemente, conquistam porções maiores de mercados. E com mais mercados enriquecem mais. A patente é, portanto, um fator de desequilíbrio entre as nações.
Tomemos um exemplo concreto. Os EUA aplicam 3% de seu PIB em pesquisa, e o Brasil, apenas 0,7%. O PIB americano é aproximadamente 14 vezes maior que o brasileiro. Os EUA aplicam 60 vezes mais recursos em pesquisas que o Brasil. Deveriam obter um número de patentes 60 vezes maior que o do Brasil. E nos daríamos por felizes se assim fosse.
Em realidade, o número de patentes cresce de maneira quadrática com a pesquisa. Em levantamento realizado na década de 70, estavam em vigência 3,5 milhões de patentes no mundo e apenas 200 mil no hemisfério sul. Destas, apenas um sexto provinha de empresas e indivíduos originários deste hemisfério. Pior ainda, uma avaliação feita na década seguinte mostrou que 95% das patentes registradas no Terceiro Mundo serviam apenas para impedir ou dificultar a competição.
Em 1884, foi criada a União Internacional de Propriedade Industrial. Em realidade, esse acordo tem um caráter comercial ao qual os países menos desenvolvidos aderem em troca de outros benefícios. Os EUA, por exemplo, deixam isso claro ao ameaçar o Brasil de retaliações comerciais. Se não cedermos nosso mercado de remédios, de alimentos, de produtos de química fina, de biotecnologia, não compram eles suco de laranja e materiais siderúrgicos.
Ao fazer essas ameaças, confessam os EUA que o estatuto da patente quando internacionalizado beneficia aquele país e os demais desenvolvidos e prejudica o Brasil e o resto do hemisfério sul. A retórica da "pirataria" não passa de um artifício para a preservação de nossa auto-estima, ou seja, para encobrir nosso pragmatismo imediatista.
Obscenidade 1 - Pois bem, a patente só pode ser admitida como uma concessão de um monopólio se trouxer uma compensação significativa, tal como o aumento da produção ou da produtividade. Se é simplesmente para satisfazer a demanda, então não é necessário um estatuto patentário. É sob esse aspecto que a legislação brasileira de propriedade industrial perverte seus próprios princípios.
Nela foi incluída uma cláusula que, em termos práticos, anula a salvaguarda da licença compulsória. Essa medida é adotada quando uma patente não é usada, e com ela o invento é aproveitado por terceiros. Sem ela, a patente serve apenas para obstruir a concorrência. Pois bem, na legislação Bezerra-Lopes foi introduzida uma cláusula que reserva o mercado brasileiro para produto importado. Isto é, um estatuto que foi concebido com a finalidade de incentivar a produção serve agora para impedir a produção.
Para conseguir esse privilégio basta ao detentor da patente elaborar um relatório mostrando a inviabilidade econômica da produção no país. Ingênua ou safadamente, essa legislação contempla a possibilidade do credenciamento de importadores paralelos, o que é uma futilidade, pois o produto em questão, se é patenteado no Brasil, também o será no país de origem. Portanto, só haverá um fornecedor possível que é o que já detém o monopólio da exportação para o Brasil.
A possibilidade de contestação do relatório que resulta na permissão e monopólio para importação pouco ou de nada serve, pois estabelece uma polêmica sobre a viabilidade econômica de difícil arbitragem. Além do mais, isso só ocorre depois de três anos da deposição original da patente. Enquanto isso, prevalece a importação e cultiva-se o mercado. Aliás, se levado ao pé da letra, o artigo 42 estabelece que, mesmo para uso próprio, é proibido importar qualquer produto patenteado. Felizmente, o legislador teve compaixão pelo doente moribundo e fez uma exceção para remédios.
Obscenidade 2 - Outra inovação contida na atual legislação patentária nacional é aquela denominada "pipeline", o reconhecimento a posteriori de patentes vigentes em outros países antes da atual legislação. Sua natureza é, portanto, transitória. É um conceito recente, elaborado no final da década passada, quando os países desenvolvidos, principalmente os EUA, retomaram as pressões para que países em desenvolvimento adotassem legislações patentárias mais permissivas.
O México cedeu, mas a Argentina resistiu. Essa é uma exigência principalmente do cartel multinacional do setor farmacêutico. É, portanto, um mistério a citação de Canadá, Hungria, Coréia e China como aderentes ao "pipeline". A legislação canadense data de 1978, quando o conceito ainda não existia. Coréia e Hungria já eram, em 1986, quando emitiram suas legislações patentárias, fornecedores competitivos no mercado internacional de fármacos. Na China, política industrial é, em grande medida, de âmbito provincial. Portanto, o nosso modelo é o México.
Obscenidade 3 - O atual acordo internacional (Trips) para a área de propriedade intelectual estabelece uma carência de oito anos para início de vigência de legislações patentárias para que as indústrias de países em desenvolvimento não sofram um impacto negativo excessivo.
A Espanha, que aderiu em 92, quando já tinha sua indústria de fármacos e química fina estabelecida, tinha tido uma carência de apenas quatro anos, mas é exceção. Pois bem, o Brasil adota um ano para todos os quesitos, exceto o "pipeline", que passa a ter validade no dia da publicação da lei. Esses nossos legisladores ou acreditam que a indústria brasileira é uma potência ou querem acabar com ela.
Obscenidade 4 - Uma tradição internacional, explicitada no Brasil pela lei 6.360, de 1976, exclui de leis patentárias a regulamentação de matéria referente a vigilância sanitária. Em seu artigo 20, essa lei permite o uso de dados bibliográficos da literatura internacional, inclusive informações incluídas em documentos apresentados para o uso de patentes. O deputado Ney Lopes havia incluído em seu substitutivo original cláusula que removia o dispositivo acima mencionado, mas que não chegou ao Senado.
Pois bem, de volta à Câmara, a cláusula foi reinstituída pelo referido deputado. Sem o artigo 20 da lei 6.360, fica bastante difícil obter o registro de medicamentos genéricos. Assim, de uma só cajadada conseguem as multinacionais a lei patentária que pediram aos céus e a remoção da ameaça dos medicamentos genéricos.
Obscenidade 5 - O Instituto de Propriedade Industrial (Inpi), que administra a concessão de patentes e é responsável pela fiscalização e aplicação da legislação patentária, será mantido pelas taxas derivadas do registro de tais documentos. Quanto maior o número de patentes, maior a renda do Inpi.
Já sabemos qual será a tendência. Aliás, um exemplo recente exemplifica essa inclinação. Na revista "Propriedade Industrial" de 13/2/96 foram publicadas as concessões de duas patentes. A primeira, PI 85026810-6, se refere ao processo de obtenção de um transgênico do bacillus Subillis e produção de alfa-amilase à empresa CPC International Inc.
A segunda, PI 8505164-0, contempla cepas de pseudônomas Solanacearum, assim como processo para controle de doenças do tabaco, à Japan Tobacco Inc. Ou seja, pelo menos dois meses antes de a legislação patentária ser aprovada no Congresso, o Inpi já aprovava patentes de microorganismos, processos biotecnológicos e processo para controle de doenças. O que fica claro é a motivação para o patenteamento desenfreado e o absoluto desrespeito à lei.

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