São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
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Carta anuncia rompimento com amigos-cineastas

GLAUBER ROCHA
SINTRA 9 DE ABRIL DE 1981

Querido Celso
Aqui tudo mais ou menos. Estou me recuperando da pericardite e escrevendo o roteiro. Conversei com Claude Antoine (produtor francês) e ele está interessado, pois tem contatos com produtores. Levou uma sinopse, mas só poderá obter respostas durante o Festival de Cannes.
A Cinemateca Portuguesa organiza a partir do dia 21 uma retrospectiva com meus filmes, incluindo "Di" e "A Idade da Terra". Aloisio me ligou de Londres, tudo ok lá no dia 24 de agosto. "A Idade" participará do Festival de Dyne (Nice), entre 28 e 2d (sic) de maio, onde será apresentado ao lado de filmes de (Jacques) Rivette e (Marguerite) Duras (é um Festival de 3 diretores). Também foi escolhido para a Semana dos Cahiers, fim de Abril. O filme se afirma lenta e gradualmente neste mar de merda cultural. Creio que a partir de Outubro começará a ser exibido comercialmente.
Sei que a Embrafilme deve estar em transe. Ainda não li jornais, mas recebo alguns avisos inconscientes. Você sabe que até hoje, desde que você entrou, nunca opinei sobre a Embra, primeiro porque lhe considero capaz de dirigi-la, segundo porque o Parlamento Cinematográfico não me ouve.
Queiram ou não -sou um marginalizado do Cinema Brasileiro. Há explicações políticas e psicológicas. Por causa deste terrorismo- a classe se afunda. Meu livro REVOLUÇÃO DO CINEMA NOVO é, no entanto, um gesto de grandeza em relação aos ex-companheiros. Trata-se do caos cultural nacional -são 20 anos de lutas teórica e prática culminadas num segundo exílio. Não me lamento but lamento a incapacidade da classe de revolucionar a cultura através do cinema. Preocupo-me, porque país sem cinema significa cultura morta, povo morto. Mas todos amam a contra-informação da TV. A crítica acabou. A Cinemateca é um antro de espionagem. A Cooperativa (alternativa que diretores pretendiam criar à Embrafilme) uma cova de ladrões. Prostituição... daí a campanha contra "A Idade da Terra", que acabou com o cineminha corte e costura que fazem, malfeito.
Creio que a Embrafilme não se justifica como Empresa do MEC (Ministério da Educação e Cultura, à época), apoiando o tipo de cinema que se faz. Na verdade... Figueiredo tinha razão quando falou das ligações da Embra com a pornochanchada, porque à luz da crítica... -90 por cento é pornô mesmo, no sentido definido por (Jean-Marie) Straub: DEGRADAÇÃO ESTÉTICA. Enquanto Leon (Hirzsman) e seu bando se masturbam com realismo crítico, Lucaks e outras besteiras... (Arnaldo) Jabor desde há muito tempo faz pornochiques... "Delmiro Gouveia" é tão pornográfico quanto "Gaijin" e "Sete Gatinhos" ou "Pixote". Os cineastas e críticos que atacaram a "Idade" não têm capacidade intelectual para uma verdadeira discussão e comparação sobre arte e revolução. O problema só me interessa deste ponto de vista e qualquer outro é falso. Esta burrice e desonestidade me exilam. Nelson (Pereira dos Santos) entrou em decadência há muito tempo... e por aí...
Como, depois do livro, não quero me bater com traidores, corruptos e canalhas irrecuperáveis (caso Miguel Borges, Cosme Alves Netto, Jack London etc.), prefiro sair do barco antes que ele afunde. E afundará. Comparo a situação ao Diretório Francês... Nada a fazer senão fechá-lo para evitar que o Estado continue jogando dinheiro fora em nome de um projeto cultural estruturado sobre o mito Glauber Rocha. A verdade é esta: foram ao Geisel usando-me e depois traíram, mas continuaram usando. Nenhum deles, salvo Geisel, entendeu meu pensamento político. Ousaram considerar-me oportunistas como eles. Não possuem senso de responsabilidade nacional. Eduardo Portela (ministro da Educação e Cultura entre 79 e 80), que usou meu apoio, não me ouviu como devia e se fodeu. Levando em consideração que o Governo não entende de Cinema... a coisa se complica. Para não ser consumido com a malta precisei me exilar e não aceito soluções conciliadoras. Várias forças políticas extracinematográficas desejam meu exílio e mesmo morte. Traíram Jango em 64 e 74. A ideologia ficou no esqueleto do (Fernando) Gabeira, é o fim de um projeto de nação... O cinema não é mais a vanguarda do pensamento nacional... eis por que o Estado já cumpriu sua missão.
Sou francamente favorável à redução da Embrafilme a um órgão puramente cultural, à desativação lenta e gradual da distribuidora, À SUPRESSÃO DO DECRETO DE EXIBIÇÃO OBRIGATÓRIA que é uma chantagem. "A Idade da Terra" não foi beneficiado por este decreto e sim "Pixote" (filme de Hector Babenco, de 1980). Então o decreto não tem sentido para o cinema revolucionário e não vejo pra que apoiá-lo. É uma chantagem da impotência. A Embrafilme não pode avalizar esta cooperativa que é um puteiro político que oculta a impotência criativa. Ruy Guerra me denuncia como fascista em Moçambique e vai buscar vantagens no Brasil... na tela é um cineasta de Direita... e por aí...
Agrediu-me profundamente o ato de Marco Aurelio ter lançado "A Idade da Terra" do jeito que lançou... ele não foi honesto nem comigo nem com você... porque deixar o filme só um dia no Guarany? Por que lançar "Sete Gatinhos" (filme de Neville d'Almeida, de 1977), pornochanchada, em todo território nacional e jogar a "Idade" em cinemas de arte? Por que não prosseguir com o filme? Por causa da politicagem com a Cooperativa, pela falta de fé no grande cinema, pelos interesses políticos em atender ao PC (Parlamento Cinematográfico, metáfora glauberiana da elite do cinema brasileiro) para perseguir Glauber... e por incompetência em gerir democraticamente os bens do Estado... Se ele deixou o filme na prateleira -este é o fato-, ele trabalhou contra mim. Não acredito em boas intenções frustradas. Mas não se trata de agredir pessoalmente ao Marco Aurelio... apenas de responsabilizá-lo pela maneira reacionária como tratou o filme... houve um erro em se mostrar a Figueiredo "A Estrada da Vida" (filme de Nelson Pereira dos Santos, de 1980) e não "A Idade da Terra"... por isto é que estou exilado e por mais dificuldades que tenha não voltarei enquanto não me for permitido atuar para resolver o problema, pois tenho conhecimento da causa.
Você interveio na Embrafilme no momento das aberturas, mas encontrou o câncer com metástase. Sei que fez o melhor, mas somente a transformação da Empresa em alguma coisa mais definida pode remover o lixo que a destrói. Fora daí não tem solução... Da minha parte não considero a guerra perdida, e sei que tenho razão. O primeiro passo seria transferir a Embra para Brasília a fim de descongestionar o Rio que é hoje o maior prostíbulo do III Mundo. Reduzir o decreto de obrigatoriedade apenas a filmes de Classe A, considerados pelo Concine (Conselho Nacional de Cinema), e reduzir o número de dias a 40 por ano em cada cinema. Assim o decreto desobrigará as pornochanchadas que os exibidores já produzem e estimulará a qualidade. Já que existe o decreto, hoje estimulante da pornochanchada, que seja para estimular a qualidade. O Departamento externo deveria se ocupar apenas de Festivais e promoções culturais. A venda deve ser feita pelos produtores. A distribuidora deveria passar a um Grupo privado ou à Cooperativa (excluindo os filmes importantes artisticamente do patrimônio). E o financiamento à Indústria, concedido pelo Banco do Brasil numa Carteira a criar.
Proponho medidas Reagueanas (referência ao presidente norte-americano Ronald Reagan) de desestatização lenta e gradual. Em Brasília, deveria ser construída uma sede moderna para a Embra, com um estúdio audiovisual de técnica moderna. Aí deveria funcionar uma Escola de Cineastas, um centro de pesquisas audiovisuais e se produzir alguns filmes criativos. Manter uma distribuição qualitativa etc... Sou favorável, aliás, à desestatização relativa de todo aparato cultural: Funarte (Fundação Nacional de Arte), INL (Instituto Nacional do Livro), SNT (Serviço Nacional de Teatro) etc...
Não vou me manifestar publicamente sobre isto nem estou escrevendo a ninguém. Comunico-lhe minhas idéias -porque é um voto e você sabe o que penso e poderá comparar minha posição com a dos outros Parlamentares...
Você vem a Cannes?
Em Maio começarão novas dificuldades financeiras. Não poderei armar logo o filme, deverei trabalhar em qualquer coisa para sobreviver. Uma solução, aliás JUSTA, seria a Embrafilme me comprar definitivamente os direitos mundiais de "Barravento", "Deus e o Diabo" e "Terra em Transe", cujos contratos estão vencidos em quase todos os países. Como são 3 clássicos e ainda inéditos na TV Bras(ileira) e nos países socialistas e muitos latino-americanos, também USA, podem ser lucrativos.
A Embra deu 500 mil adiantados por "Deus" e 100 mil por "Barravento" e "Terra em Transe". SE A EMBRAFILME COMPRAR ESTES FILMES, considerando seu VALOR CULTURAL (indiscutível e creio que o MEC compreenderá este investimento) -eu estaria definitivamente pago. Porque, ironicamente, eu estou na merda enquanto os outros estão na cama. Não quero mais depender da Embrafilme -uma vez que defendo a desestatização. Se a Embra comprar meu patrimônio, seria como o MEC comprar três quadros do Portinari. Trata-se de preservar um produto que não posso conservar nem comercializar. Com isto eu poderia ter o mínimo de independência para tentar sobreviver até me estruturar como empresário. Minha falência é de origem política. Exilei-me e meus sócios do PC me roubaram. Expliquei esta situação ao Aluisio Magalhães, mas até hoje não obtive resposta. Não quero solicitar à Embrafilme novo financiamento. Abrirei mão de possíveis vantagens em Nome da História... Caso a Embrafilme não queira comprar, tentarei vender a uma Fundação Cultural Internacional, a Gulbenkian talvez, ou a algum colecionador exótico...
Escrevo-lhe sem delírios, ansioso por superar uma fase e iniciar outra. Agradeço-lhe sua atenção, espero (trecho ilegível) no dia 21 na Cinemateca Portuguesa, dia do início da Perspectyva. Miguel Sá da Bandeira trata-me muito bem.
A RAI (rede de TV italiana) edita o roteiro de "O Nascimento dos Deuses" no fim do mês.
Não poderei ir a Cannes porque estarei trabalhando e não há dinheiro para isto.
O que lhe falei nesta carta é confidencial, pois no momento não estou me comunicando com ninguém mais no cinema brasileiro.
Trata-se de um momento difícil e caso não sejam tomadas medidas DRÁSTICAS (bonapartistas...) o cinema brasileiro acaba de vez.
Creia na minha sinceridade, abraços na Ana e família, Paula (Gaetan) manda lembranças,
Glauber

endereço deve ser via Carlos Garcia.
O telefone você deve ter: 2932090

PS
não existe, segundo a burrice local, incompatibilidade entre indústria e cultura. O problema é que não existem projetos industriais nem culturais. O atual modelo cinematográfico é influenciado pela Globo e está aquém de Hollywood. O destino da Embrafilme seria flamejar a cultura nacional. O problema é que ninguém assume uma posição cultural. Todos temem tomar decisões. Você reúne condições para operar algumas das reformas necessárias antes que seja tarde.
AINDA NÃO LI SUA ENTREVISTA NO CADERNO B. Antes de me manifestar sobre tudo isto gostaria de OUVI-LO.
Outro abraço,
glauber.

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