São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
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Intriga na barra da Justiça

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Trinta e tantos anos de trabalho em direito criminal rendem dezenas de enredos e personagens. Autor de obras jurídicas, o advogado Paulo Sérgio Leite Fernandes, 60, decidiu mergulhar nesse manancial com olhos de ficcionista e retirou daí seu primeiro romance, "Caranguejo-rei".
Marina, jornalista que ascendeu na carreira de forma tão rápida quanto duvidosa, é assassinada após uma festa no Guarujá. Há vários suspeitos. Uma doméstica e um pescador, sem qualquer relação entre si, assumem em separado a autoria do crime. Sobram razões para desconfiar deles como criminosos, mas não se deve desviar a atenção de outros personagens, de passado ou presente mal-cheiroso.
Criando a dupla confissão, num enredo simples, Fernandes gera no leitor uma sutil mas interessante inversão de expectativas: mais do que saber quem matou, queremos saber quem não matou a vítima.
Juntamente, somos levados a tentar compreender o que pode fazer alguém assumir um crime que, em princípio, não cometeu.
Como não poderia deixar de ser, haverá um julgamento, ficando acesa nossa curiosidade até o final -e este, embora menos instigante do que o livro todo prometia, ainda consegue surpreender. Detalhar mais o enredo aqui comprometeria a leitura de um romance desse tipo.
Portanto, palmas para Fernandes, que atinge o suspense, prende a atenção e entretém, apesar de importantes lacunas na linguagem.
Com efeito, se o mundo forense lhe deu farta munição para histórias e personagens, também fez fincar-se no seu texto traços indesejáveis na ficção. O primeiro é a rigidez; o segundo é uma obsessão técnica que, aliada a sonoridades nada literárias, não cai bem.
Nem mesmo em novela da Globo, por exemplo, um personagem comum como o jornalista Marcelo diria a um garçom "dar-lhe-ei uma boa gorjeta"; tampouco uma jovem liberada se dirigiria ao amigo exclamando "hoje, por exemplo, não quero em você o amante. Quero apenas o macho".
Também fica esquisito o narrador, que não o faz ironicamente (aí seria outra coisa), escrever: "Os dois corpos se uniram em tétrico amplexo"; ou "o italiano foi ao banheiro e lavou-se conspicuamente". Mais um exemplo: "Restou a Marco Aurélio esperar, angustiado, o ultrapassamento do prazo de comprovação do não-contágio" (!).
Essa falta de lubrificação linguística aparece também na estrutura narrativa. Fernandes sempre faz primeiro a apresentação dos personagens, um a um, seu passado, trejeitos e manias, para reuni-los depois nos acontecimentos. Funciona, sim, mas soa esquemático demais.
Na composição dos personagens -outra face do problema-, há pouca margem para o leitor "viajar". Exagera-se nas caracterizações, por exemplo, quando é sabido que, se formatar um personagem implica criar particularidades, o excesso de detalhes, concentrados, acaba por asfixiá-lo.
Em algumas passagens, nas quais personagens são retratados na intimidade, Fernandes supera a deficiência -e estão aí seus melhores momentos na exploração de recursos narrativos. Veja-se a cena em que o juiz, antes de adentrar à sala de audiências, faz a higiene habitual e tenta arrancar do queixo um pelinho que sobrara de um barbear impreciso.
Afirma o narrador: "Bittencourt abriu o armário, procurando pinça. Não a encontrou. Uma servente qualquer a furtara. Mandaria chavear o roupeiro no dia seguinte, logo de manhã. Irritou-se. Sua dignidade de Magistrado não admitia um só deslize, no corpo ou na indumentária".
Fernandes precisa se soltar mais, como nesse trecho. Pois fica evidente em "Caranguejo-rei" que, enquanto na "barra" ele certamente teve de enfrentar chuvas e trovoadas, no terreno novo da literatura o autor preferiu não se arriscar muito.

A OBRA
Caranguejo-Rei
Paulo Sérgio Leite Fernandes. Editora Ateniense (r. Eneas de Barros, 1.010-A, São Paulo, CEP 03613-000, tel. 011/295-4520 ou 296-3051). 336 págs. R$ 35,00.

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