São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
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O arquiteto das percepções finas

RÉGIS BONVICINO; JOÃO ALMINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Cego de um olho, por um estilhaço, desde os dois anos, Robert Creeley, 70, oito filhos, inúmeros livros de poesia, prosa e crítica, chega ao Brasil neste mês num momento em que a estabilização da moeda acabou por explicitar a crise social, aguda, de um país há muito sem projeto de afirmação da cidadania.
Creeley, nesta entrevista, cita Ludwig Wittgenstein como uma das mais decisivas influências de sua vida. Lembrei-me imediatamente de um dos aforismos do filósofo: "Em cada questão filosófica séria a incerteza mergulha até as raízes do problema. Temos que estar sempre preparados para aprender algo de totalmente novo". De fato, podemos aprender algo de "diverso", ao menos com a poesia deste norte-americano de Arlington, na verdade, Watertown (a maternidade ficava em Arlington, mas a casa da família em Watertown), Nova Inglaterra.
Para ele, o poema, mais do que um objeto (bem) feito, é jogo de energias, criado pela passagem e pelo cruzamento da mente, da palavra e do mundo -um campo de forças, onde "a forma não é mais do que uma extensão do conteúdo". E o registro tipográfico, na página, além de sua óbvia consistência, partitura, voz. Um poema, como Creeley o imagina, deve ser ouvido.
Bob, como o chamam, iniciou seu percurso na década de 40, depois de servir por um ano (1945) em Burma, na Índia, como motorista de ambulância, no fim da Segunda Guerra. Os tempos eram, segundo ele mesmo, hostis aos escritores de inovação: "Universidades e escolas estavam tomadas pela idéia de 'forma extrínseca', e W.H. Auden era, por assim dizer, o poeta oficial, modelo a ser seguido". William Carlos Williams (traduzido por João Cabral e mais sistematicamente por José Paulo Paes), Louis Zukofsky, Whitman, Ezra Pound e Basil Bunting, suas maiores referências, eram autores pouco ou nada reconhecidos.
"O poeta pensa com seu poema", dizia Williams, que influenciou Creeley -que, por seu turno, poderia dizer: "o poeta percebe com seu poema". Sim, Creeley é o poeta das percepções finas -arquitetadas por tensões entre Terra e mente, corpo e estar-no-mundo- com sintaxe complexa e sutil. A poesia da prontidão, do alerta, do alarme, da vigia e da guarda, como a definiu Stephen Fredman ("The Grounding of American Poetry", 1993).
Mas qual Pound interessou a Creeley? Um Pound um tanto diferente do explorado pelos pioneiros (anos 50) Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari (tradutores de Pound e de todo um elenco de escritores destacado por ele). A Creeley interessou menos o "translator", o arqueólogo, explorador da cultura, muitas vezes, européia, como bem o definiu Octavio Paz, e mais o criador da possibilidade de um método de como escrever versos, em confronto com os padrões da época de seu início, grandiosos e imprecisos. A ele interessou também o poeta, da qualidade da emoção, de: "O que você verdadeiramente ama, permanece. O resto é entulho".
A poesia de Creeley representa via substantiva, diversa, de inovação, em diálogo com a experiência, significando, em síntese, um dos possíveis encontros americanos entre Williams (o pediatra de uma periferia, a simplicidade no tom, a sintaxe), Pound (condensação, precisão), Black Mountain College, a contracultura e Whitman -que a ele ensinou "que alguém fala por si mesmo"
(RB).
*
Folha - O que é a poesia hoje?
Robert Creeley - Bem mais do que sempre foi -uma linguagem complexa com a presença de pessoas, como disse Louis Zukofsky, "limitada ao alto pela música e abaixo pela fala".
Folha - Qual é a ética e a política da poesia, se é que existem?
Creeley - O fato de a poesia ser vista especificamente como a "voz" de uma cultura ou a "voz" das pessoas significa que ela carrega um "ethos" -reconhecido como tal ou não. Para elas, cultura e pessoas, isto soa como seu mundo. Para o poeta pode, no entanto, significar a glosa que Ezra Pound fez de Confúcio: "O homem permanece por sua palavra". Mas esta visão reitera, novamente, a crença da cultura na sinceridade, sinceridade que, por exemplo, Jean Cocteau questionaria, com certeza. "Para falar a verdade, a seu modo as palavras mentem" é o que dizia Robert Duncan. Eu sei que sinto necessidade de agir na poesia da mesma forma como atuo na vida, nos dois casos, de um modo diverso, isto é, para me afirmar explicitamente, para manter a fé.
Folha - Como o sr. se situa na poesia americana atual?
Creeley - Obviamente, aos 70 anos, eu me vejo como um "ancião". Meus queridos companheiros já se foram em grande parte -Charles Olson, Robert Duncan, Paul Blackburn e muitos outros. Então, eu estou simplesmente aqui. E estarei até não estar mais.
Folha - O sr. foi amigo de Ezra Pound e de William Carlos Williams. Pode falar sobre eles?
Creeley - Ambos, cada um à sua maneira, foram imensamente generosos, pois me levaram a sério -o que é a única coisa que um "poeta velho" pode fazer com um poeta (mulher ou homem) jovem que a ele recorre. Pound tinha um humor adorável e se referia a mim como "the creel" ("o cesto", de pescadores) ou "pequeno cesto de peixes" e assinava as cartas como "o seu, Anônimo" ou "Eu Rato". Ele me mandava ocasionalmente livros, para minha educação, e os livros chegavam da "casa do escaravelho", como ele escrevia, no lugar reservado ao remetente. Eu nunca pedi a ele para comentar meus poemas. Creio mesmo que nunca enviei nenhum a ele. Mas, quando sua filha Mary veio aos EUA, me contou que seu pai havia dito que ela deveria entrar em contato comigo. Isto me comoveu muito.
Williams foi meu mais duradouro modelo. Ele me ensinou muito! Frequentemente, me escrevia, devolvendo as anotações que eu havia mandado a ele, com algo como: "Bom! O fermento está crescendo". Ele estava lá de um jeito muito particular. Ele nos fez sentir a todos menos paranóicos, pelo simples fato de que enfrentava uma grande rejeição. Se ele podia encará-la e seguir em frente, então nós também podíamos!
Folha - Quais são as mais significativas referências não norte-americanas em seu trabalho?
Creeley - Eu amo Wittgenstein. Eu amei os escritores russos. Stendhal. Os fortes espanhóis como Antonio Machado ou o peruano Cesar Vallejo -Lorca, evidentemente. Ivan Turgueniev! Conrad. Às vezes um livro consegue abranger todo um universo, como "Os Sertões", de Euclides da Cunha, que li na tradução de Samuel Putnam. As traduções são frequentemente as verdadeiras influências no meu caso. As traduções de R.H. Blyth de hai-kus foram, para mim, doces e ativas -e memoráveis.
Folha - Como o sr. faz um poema? O que o estimula? Qual é o seu método de trabalho?
Creeley - Eu pareço ser "muito disciplinado", mas não sei contar a vocês como e porquê. Eu presto intensa atenção ou, como minha família relata, posso me concentrar extraordinariamente -eles dizem. Todavia, eu simplesmente "escrevo" poemas, prontos -sem dúvida- por anos e anos de escutar as pessoas dizerem coisas, de escutar cachorros latindo, carros passando, música, toda a sorte de séries e timbres -ou o que quer que seja.
Qualquer coisa pode me estimular a escrever -é como ter um impulso para começar a andar. Gosto de escrever poemas e então agradeço por poder fazê-los. Penso no que Williams disse, em "The Desert Music", respondendo a questão similar: eu trabalho todo o tempo, nunca tiro férias, mesmo quando estou dormindo.
Folha - Há futuro para a poesia num mundo mercantilizado?
Creeley - Tanto quanto existirem pessoas nele.
Folha - Há futuro para a poesia escrita enquanto gênero?
Creeley - Como vocês sabem, a "poesia escrita" não está por aí há muito tempo. Arquíloco e Safo eram primariamente poetas "líricos" (palavra falada) e, para eles, a poesia poderia ser "escrita", visando a garantir sua sobrevivência à parte do veículo social/cultural da épica etc. etc. Se, com a pergunta, vocês querem saber se a poesia vai sobreviver "escrita" com os "novos meios" (computador, por exemplo), então esta é realmente uma questão menor. Melhor indagar: vai sobreviver uma poesia que não possa ser instantaneamente falada (recitada) por, no mínimo, mil pessoas, que, por um momento, estarão instadas a falar suas (da poesia) palavras e sons -se não estiver "escrita"? Espero que sobreviva.
Quem poderia pensar a si mesmo como "sobrevivente"? Neruda? Ginsberg? Lorca? A "literatura" não é, definitivamente, amiga da poesia, nem o são os gêneros e muito menos as tentativas de se colocar condições abstratas entre a arte e suas pessoas. Eu amo o título de um estudo de Borea sobre Lorca, algo como "Lorca - o Poeta e as Pessoas". Isto é "sentimental", mas este é o ponto. Para a frente!

Régis Bonvicino é poeta, autor de "Ossos de Borboleta" (Editora 34) e "Passagens", com traduções de Michael Palmer (Gráfica Ouro Preto). Está preparando "Poemas", de Robert Creeley, a ser lançado em breve.

João Almino é romancista, autor de "Samba-Enredo" (Marco Zero) e "Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo" (Brasiliense).

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