São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
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Quem não pode transar não pode casar

RUBEM ALVES

Pouco antes de morrer, Guimarães Rosa fez a seguinte declaração, numa entrevista: "A lógica é a força com a qual o homem algum dia haverá de se matar. Apenas superando a lógica é que se pode pensar com justiça. Pense nisto: o amor é sempre ilógico, mas cada crime é cometido segundo as leis da lógica". Essa declaração estava guardada num arquivo do meu cérebro, esquecida. Mas, repentinamente, algo aconteceu -e ela surgiu fulgurante na minha memória.
O que aconteceu: uma história comovente de amor, parecida com a de Abelardo e Heloísa. Ele, atingido por uma tragédia física, nunca mais poderia ter uma relação sexual. Ela, enfermeira, cuidou dele. Os dois se apaixonaram. Desejaram se unir para sempre. Resolveram se casar. Pensaram que Deus haveria de abençoar aquela manifestação tão pura dele mesmo porque Deus é amor. O amor é maior que o sexo.
Seria, então, a hora de a igreja fazer uma festa, tocar os sinos, acender as velas, queimar o incenso: naqueles dois que desejavam se casar por puro amor estava a manifestação viva da espiritualidade do homem. O homem não vive só de pão e sexo: vive de beleza, de ternura, de sorrisos, de palavras, de gestos de carinho.
Mas aí falou o bispo. Discordou. Proibiu a festa do amor. Proibiu o casamento. Não culpem o bispo. Ele é inocente. Não é opinião dele. Bispos não têm opinião. Bispos são seres eclesiásticos: dizem o que a igreja manda. É a própria igreja que confirma o que digo, numa fórmula antiquíssima: "Ubi episcopus, ibi ecclesia" (onde está o bispo, ali se encontra a igreja).
A voz do bispo é apenas a conclusão de um silogismo, cujas premissas são dadas pela igreja. E o dito pelo bispo é ortodoxo. A conclusão é logicamente exigida pela teologia. As premissas já se encontram em santo Agostinho, pai da doutrina sexual da Igreja Católica. Segundo ele, foi no sexo que primeiro se manifestou a desordem do pecado. Originariamente, segundo a vontade do criador, a função única do sexo era a procriação: completar o número daqueles destinados a habitar os céus ou a morar nos infernos.
Prazer, ternura, alegria, que normalmente associamos ao ato sexual, segundo o doutor da igreja, não pertencem à sua essência. O propósito do sexo não é a realização da felicidade humana, mas a realização da demografia divina.
Vem agora a justa conclusão do bispo: se o objetivo do sexo é completar o número dos eleitos por meio da procriação, se a procriação se dá por meio do coito (essa é a palavra certa, num contexto desses), se o objetivo do casamento é legalizar e controlar sacramentalmente o exercício do coito, concluiu-se, logicamente, que um casamento em que o coito procriativo não pode acontecer não pode ser legitimado sacramentalmente.
Sugiro que a igreja, por amor à lógica, beba o fel até o fim. Também devem ser proibidos todos os casamentos em que um dos cônjuges é estéril. Que não digam que não é assim porque um milagre é sempre possível. Se um milagre é sempre possível, por que não no caso em questão? Uma mulher que cirurgicamente perdeu o útero não pode ter permissão para casar. Uma mulher que passou a menopausa também não pode casar.
Um homem vasectomizado, igualmente, está impedido de receber o sacramento do matrimônio. E eu fico a imaginar o que a igreja faz de s. José que, segundo se espalhou à boca miúda, e para explicar a virgindade perpétua de Maria, era velho e impotente. Dirão que aquela foi uma exceção, que s. José foi só para proteger as aparências -na verdade, ele nenhuma função tem na história, posto que o pai verdadeiro de Jesus Cristo foi o Espírito Santo. Maria nem precisava ter se casado. Como disse o Alberto Caeiro, ela foi apenas uma mala que procriou sem amar.
Diz o Alberto Caeiro que "tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica". Discordo. O certo seria, na linha do dito pelo Guimarães Rosa, dizer que "tudo no céu é lógico como a Igreja Católica". E virar a última gota do fel: "Lógico e mortal". É possível que chegue um dia em que, para se casar, será necessário apresentar atestados médicos de potência sexual e fertilidade.
Essa idéia de sexo como maquineta de fazer crianças me é repulsiva. Só podem tê-la aqueles que não leram os "Cânticos dos Cânticos", livro tão sagrado e canônico quanto os evangelhos. Não existe naquele livro uma única sugestão de que sexo seja para procriar. Ali, sexo é só para a alegria do amor. Claro, a igreja se livrou do incômodo transformando o poema erótico numa alegoria do amor de Cristo pela igreja. E, ao fazer isso, deu razão ao Alberto Caeiro. Foi bom que o bispo tivesse falado. Assim todos puderam ver com clareza a doutrina da igreja sobre o sexo e o casamento: casamento não é para amar. Casamento é para transar. Quem não pode transar não pode casar.

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