São Paulo, sexta-feira, 10 de maio de 1996
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Obras do acaso

DAVI ARRIGUCCI JR.

é uma dádiva do acaso que um continho, feito dessa poesia ligeira associada à musa da dança, Terpsícore, tenha se desgarrado das obras completas de Machado de Assis para vir dar hoje em nossas mãos, depois de tantos anos esquecido numa página de jornal. Burlando o tempo e decerto os especialistas, que não são poucos, escapou também à fugacidade das gazetas, cujo melhor encanto, no dizer do próprio Machado, está na hora em que aparecem. O fato é que temos aqui a pequena obra-prima, e tão viçosa como tantas outras que saíram da pena do grande contista.
Publicada na "Gazeta de Notícias", em 25 de março de 1886, deve mesmo ter sido escrita por essa época, pois revela traços de tom, estilo e estrutura das melhores histórias que escreveu entre 1880 e 1900. Ainda mais, teve sorte de guardar-se para o leitor de agora, depois de quase um século de literatura moderna, pois mostra certas características que aprendemos a identificar com essa literatura, tornando palpável a presença viva de Machado de Assis em nosso tempo.
A refinada arte de contar histórias do velho bruxo se acha de fato toda aqui, muito embora falte a bisbilhotice costumeira do autor intruso, que, de resto, também está ausente de outros contos. Vem substituída por um modo de narrar na forma dramática da cena direta e do estilo indireto livre, dando voz às personagens, desde o início apresentadas em ação. Esse modo flaubertiano da história que se conta a si mesma, raro nele, que prefere a técnica da intrusão irônica à maneira de escritores do século 18, como Sterne ou Voltaire, é logo compensado por outros traços tipicamente machadianos. Na naturalidade e leveza do diálogo e na caracterização dissonante das personagens, se nota a força ferina do grande escritor e sua poderosa habilidade em juntar, com agudeza e graça, os aspectos desencontrados da realidade e do modo de ser, compondo com eles uma estrutura complexa, ambígua e sugestiva, em que muita coisa permanece em aberto, sob a ordem aparente até e depois do arremate final.
O conto resume a vida de um casal pobre, Porfírio e Glória, que se encontra na dança e na dança joga sua possibilidade de sair do aperto da pobreza, aparentemente preferindo divertir-se gastando a poupar, sem que se saiba ao certo o grau de deliberação consciente, delírio ou erro de cálculo que interfere nesse ato. O fato é que assim procedem, fazendo arder no vestido de seda da mulher e na festa de estrondo, lotada de convidados, o dinheiro que o acaso da loteria trouxera ao marido.
Embora a narrativa tenha início numa cena posterior, o fio da história começa com o encontro do casal, cuja motivação nasce ainda da imagem da mulher na dança. Nesta, o corpo de Glória, que ao mover-se tudo move, vem caracterizado pela inesquecível "mistura de cisne e de cabrita", para a delícia de Porfírio, que casualmente a vê dançando. Ao cravar nela os "olhos de sátiro", se acende o desejo que decide seu destino.
A ousadia dessa revelação da carne e do espírito, assim como do destino, no momento casual em que ele pára por um instante na rua da Imperatriz, diante de uma janela que dá para a moça dançando e seu futuro, põe toda a história sob o ritmo da arte ligeira de Terpsícore. E, dessa forma, o desenvolvimento narrativo é administrado com economia, passos leves e admirável precisão pelo narrador, funcionando como um espectador neutro, para quem a arte de compor o conto se colocasse ela própria sob o signo da dança. Não é à toa que no baile final, Porfírio, que vai de espectador a marido e criador da festança, olha para a mulher com "olhos de autor", espelhando o processo profundo de toda a composição, armada como contemplação dessa curiosa dança de dois seres pobres em torno do desejo, do acaso e do dinheiro.
Na imagem decisiva, que combina a elevada e nobre altivez do cisne com os movimentos baixos e sensuais da cabrita, se arma e irradia, com ritmo contraditório, o contraponto básico entre os níveis discrepantes de classe e os movimentos do desejo, a que aludem os respectivos bichos. Antecipa, desse modo, os tempos e contratempos do futuro casal, que passará, aos solavancos, da falta ao esbanjamento do dinheiro, das durezas da vida de pobre à ostentação da riqueza na festa de arromba. Nela, na verdade, arde e se espiritualiza, rarefeito e sublimado, o desejo, que é do corpo e do coração, de todo o ser, impelido, como na dança, de encontro à realidade material que tudo condiciona. Sugere, assim, pelos enlaces complexos que mantém com o restante do enredo, o embate nuclear entre o desejo e a falta, que marcará com seu ritmo dúplice a vida do casal. Ambas as coisas surgem contraditoriamente unidas na experiência do par e na ligeireza da dança, que deixa no ar o ardente desenho dos corpos enlaçados no rodopio rápido e fugaz, como o dinheiro que, vindo da roda da fortuna, arde com a febre delirante de Porfírio e se esvai com a festa final, até o simbólico apagar-se das últimas velas, acompanhando o extinguir-se da dança e da narrativa.
O verdadeiro par da dança é então o dinheiro, que falta aos dançarinos já casados e endividados no começo do conto. O ímã da sensualidade, já insinuado nos olhos de sátiro grudados aos meneios da cabrita, e a poesia do corpo volátil, que leva o espírito, acabam arrastando o par unido para a constrição do dinheiro e a paralisia da dívida, como que confirmando o dito popular segundo o qual alegria de pobre dura pouco.
A resposta insólita a essa situação encalacrada é um dos grandes achados do conto, demonstrando a profundidade inesperada em que penetra por desvãos o olhar machadiano, até a complexidade ambígua dos móveis múltiplos e variáveis que podem estar na raiz do ato. É que consegue vasculhar, para nosso desconcerto, o tecido mais íntimo da realidade social brasileira junto com a alma secreta que nela habita: ressalta então o caráter problemático, o comportamento contraditório e a complexidade do modo de ser do homem, incluindo o do homem pobre, quase nunca alvo de atenção, por parte da literatura brasileira, em toda a sua real dimensão humana. As atribulações da existência do pobre que de repente fica rico por obra do acaso -a roda da fortuna que é das poucas a poder tirá-lo da situação irremediável num quadro social imobilista como o nosso- se situam no nervo do conto, como um princípio estrutural, que estando latente na imagem inicial desencadeadora de toda a ação, a seguir se desdobra e toma corpo nos eventos que constituem o enredo como um todo.
Com efeito, na cena inicial é a dívida de seis meses de aluguel que deixa Porfírio amofinado contra a parede, antes de ir para o trabalho em sua oficina de marceneiro. Ele, cujo nome lembra a púrpura real e a riqueza, encarna, desde logo, a preocupação contrária do dinheiro que falta e, mais tarde, esbanjará gloriosamente, ao ser bafejado pela sorte. De início, porém, a situação é aparentemente sem saída no que toca ao futuro do casal, metaforicamente emparedado e na dependência do favor improvável -o empréstimo do padrinho-, só permitindo o retrospecto. É assim que se lê a cena seguinte do encontro casual dos futuros casados, reunidos pela dança fortuita, e depois também as cenas resumidas e retrospectivas do aprendizado da dança a que se entrega Porfírio, da procura da casa e, por fim, das bodas. Aqui o dinheiro continua presente, em baixo contínuo ou em surdina, como convinha ao olhar sutil do escritor, que insinua as dificuldades da negociação pelo preço do imóvel e ao mesmo tempo a poesia dos arabescos da fachada, capazes de roubar os olhos do comprador e levá-lo a aceitar sem mais o negócio; no momento do casório, de novo os riscos do gasto excessivo e do endividamento quase arruínam as "bodas de estrondo", salvas pelo empréstimo do padrinho de casamento, que logo se cansa de afiançar as mãos rotas do "par de malucos".
Mas o decisivo é a espécie de plano para gastar o dinheiro que Porfírio concebe ou a que é levado em seu delírio, depois de ganhar na loteria, desenvolvendo-o quase com método, por etapas, como se se empenhasse a dar cumprimento meticuloso, consciente ou inconscientemente, ao desejo nascido com a dança. Ao contrário da voz corrente que atribui ao pobre o mau uso da riqueza imprevista, malbaratada pelo gasto impensado, Porfírio parece optar pelo abuso, e desbarata com entusiasmo, levando junto sua companheira de dança, os 500 mil réis que lhe traz o bilhete premiado. Para isso, convence a mulher, com hábil argumentação -os argumentos são enumerados de sua perspectiva, por meio do estilo indireto livre, e não se sabe até que ponto está tratando de convencer-se a si mesmo da própria ilusão-, a aceitar, primeiro, o vestido de seda caro e, depois, o pagode, que logo vira festa de estrondo, capaz de dar o que falar e ficar na memória do povo. Esse projeto à primeira vista mirabolante, no qual se pode suspeitar aquele grão de sandice ou a idéia fixa tão comum nas personagens machadianas, irá culminar na febre ou delírio (são estas as palavras empregadas para descrevê-lo no ato) da festa final, cujo intuito último é fazer arder prazerosamente na dança o que lhes trouxe a fortuna. A dança, que estava no começo, volta no fim, deixando o casal sem dívida, mas também sem níquel, no mesmo círculo da pobreza de sempre.
Ora, o aparente delírio pode muito bem revelar, na verdade, a Porfírio sua condição real frente ao trabalho alienado, pois parece perceber na realização livre do desejo, para além da estrita necessidade, algo que o põe de fato além da condição do escravo, a que não quer e teme se reduzir, uma vez reduzido seu universo de aspirações. De algum modo, o artesão passa verdadeiramente a autor de seu destino e do de Glória, ao dar cumprimento ao que deseja para além do mero ganha-pão. É o que diz à mulher no momento que precede a festa, quando tenta convencê-la da importância de realizá-la, depois de enumerar razões ou racionalizar o delírio.
Assim, o conto vai desembocar num desenlace paradoxal, que se desvia do alvo aparentemente visado pela ironia machadiana, a que, de início e em meio a dúvidas quanto ao comportamento de Porfírio, parece estar sendo conduzido também o olhar do leitor. Quase todo o tempo, permanecemos à espera da catástrofe do esbanjador ou da quebra realista de seu mundo ilusório, que afinal não vem. A paródia realista da ilusão romanesca não ocorre no conto. É que, em vez da história de um perdulário contumaz e patético, que sempre malgasta irresponsavelmente o que possui, sem conseguir escapar do círculo vicioso que o aferra à pobreza, nos defrontamos talvez com um homem que escolhe livremente o ato que o redime da sujeição degradante. Sujeição a um esforço que o afasta de si mesmo, roubando-lhe a própria substância humana. Fiel a si mesmo e ao desejo, Porfírio se entrega mais uma vez à dança, cuja ardência tudo consome até o raiar do dia.
A ironia de "Terpsícore" parece voltar-se, portanto, não contra as ilusões do desejo, mas contra os grilhões de ferro que impedem o homem, para dizê-lo com a imagem do conto, de dançar livremente, aferrando-o aos limites da necessidade estrita de sobrevivência e, no extremo, ao trabalho escravo. Dois anos antes da Abolição, foi escrita provavelmente essa história. Passado um século, não se extinguiram as velas e a dança, cuja chama ambígua, mas perene, se alimenta do teor de verdade humana que a obra de arte resguarda das contingências da história. E, infelizmente, tampouco se extinguiu a pobreza: estão mais vivas do que nunca a complexidade, a ousadia e a força da ficção machadiana.

NOTA
O texto acima é a apresentação do livro "Terpsícore", editado pela Boitempo.

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