São Paulo, sexta-feira, 10 de maio de 1996
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A espada e a oliveira

TIAGO C. P. DOS REIS MIRANDA

raros foram os momentos em que a historiografia portuguesa conseguiu ultrapassar as fronteiras da sua própria língua. No fim do século 19, Oliveira Martins averbou um apreciável sucesso hispano-americano com os traços fortes e impressivos da "História da Civilização Ibérica"; a "Breve Interpretação..." de Antonio Sérgio teve duas peculiares edições espanholas em cerca de 20 anos; mais tarde, a escola dos Annales reconheceu e divulgou o valioso trabalho de Vitorino de Magalhães Godinho. Foi em boa parte em contato com este colega de Fernand Braudel, Le Roy Ladurie, Frédéric Mauro, Pierre Vilar e muitos outros, que alguns dos cientistas sociais de Lisboa, que agora publicam suas teses, aprenderam a buscar condições para poderem usufruir de um diálogo tanto quanto possível interdisciplinar com os grandes centros universitários europeus.
Terminando sua dissertação de mestrado sobre o imaginário das práticas mágicas no Portugal do século 16, Francisco Bethencourt, jovem professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, recorreu ao apoio do Instituto Universitário Europeu de Florença para desenvolver um projeto de pesquisa que levantava o problema da estrutura organizativa e do funcionamento da Inquisição. Auxílios suplementares da Casa de Velásquez, da École Française de Rome e do Warburg Institute facilitaram-lhe o acesso aos mais importantes núcleos documentais para a história dos tribunais da fé em Portugal, na Espanha e na Itália. O resultado de oito anos de dedicação foi um volume que constitui o primeiro estudo do conjunto das inquisições modernas.
A sólida formação acadêmica do autor ressalta do à-vontade com que introduz a pertinência de uma abordagem comparativa, desdobrada em quatro grandes "vetores": ritos e etiqueta, formas de organização, modelos de ação e sistemas de representação. Trata-se de um programa que tanto se quer atento aos elementos de constância das relações sociais, ao longo de quase quatro séculos, como aos conflitos e aos fenômenos de crise e ruptura, que denunciam as especificidades dos sujeitos, do tempo e dos espaços. Coerentemente, portanto, entre os objetivos estratégicos expostos, acaba figurando com algum destaque o de melhor conhecer a composição dos diferentes grupos de agentes institucionais, para "esboçar uma imagem mais rigorosa do enraizamento social das inquisições e dos jogos de poder em que estiveram envolvidas" (pág. 11).
O escrupuloso aproveitamento da já existente produção historiográfica sobre cada um dos tribunais da fé constitui importante trunfo do trabalho de Francisco Bethencourt. No caso das observações sobre a implantação de estruturas burocráticas intermédias na Península Ibérica, nota-se constante diálogo com as obras de investigadores espanhóis e anglo-saxônicos, como Jaime Contreras, José Martinez Millán, Stephen Haliezer e Sara T. Nale.
As páginas dedicadas às flutuações no ritmo de nomeação dos familiares portugueses e sua menos aristocrática origem social do que parecia supor António José Saraiva, baseiam-se nos dados pacientemente colhidos por José Veiga Torres, professor da Universidade de Coimbra (págs. 127-129). Os grandes levantamentos estatísticos realizados na década de 80 por Gustav Henningsen, E. William Monter e John Tedeschi possibilitam, enfim, muitas das inovadoras conclusões a respeito da tipologia e da distribuição geográfica dos delitos.
Os pontos de vista dos perseguidos interessam à "economia do texto" na estrita medida em que ajudam a perceber os sistemas de representação que ao longo dos anos enredaram as inquisições. Sem pretender encontrar um meio caminho entre a "lenda negra" e a "lenda branca", Francisco Bethencourt constata que elas são indissociáveis dos "fatos" (pág. 11), cabendo ao historiador integrá-las na sua análise, como peças não-autônomas de um "puzzle" complicado, onde os vencidos se tornam vencedores" (pág. 297). Este passo resulta na exposição exaustiva, mas serena, dos diversos grupos de argumentos em debate. Aturdidos por ferrenhos partidários de arrebatadoras teses sobre a existência de cristãos-novos mais ou menos genuínos, os leitores de língua portuguesa tenderão a achar especialmente gratificante o item que se segue à introdução do penúltimo capítulo do livro.
A abordagem dos emblemas que ajudaram a difundir o ideário inquisitorial merece equivalente sensibilidade do autor. Ao longo do capítulo "A Apresentação" (págs. 76-103), começa a ressurgir a esquecida história dos estandartes, das bandeiras, dos escudos, dos selos e das insígnias que enriqueceram o cotidiano e as grandes cerimônias de cada um dos tribunais. As armas dos hispânicos compunham-se basicamente de três elementos: ao centro, a cruz latina; um ramo de oliveira, à direita; e uma espada, à esquerda. Simbolizando a morte de Cristo e a redenção dos homens, a cruz reafirmava o mistério da fé e a soberania da igreja de Roma; o ramo de oliveira simbolizava o perdão dos arrependidos; a espada fazia acorrer à lembrança o justo castigo dos hereges. Este conjunto trifuncional de raízes indo-européias podia tornar-se mais complexo, adquirindo outros significados. Escudos dos reis de Espanha remetiam a uma certa partilha de responsabilidades com a Coroa; imagens de São Domingos, e seus atributos, invocavam a sombra tutelar da Ordem dos Pregadores. À mistura com enunciados religiosos, desvendam-se, assim, diferentes modalidades de compromissos de poderes.
A existência de uma linha de raciocínio clara, lógica, quase orgânica, do início ao fim do livro, não impede alguma autonomia das partes. Se quiser, o leitor pode consultá-lo rapidamente com base no sumário de matérias ou de um dos dois índices de referências, na certeza de sempre vir a ler passagens "com cabeça, tronco e membros". Outra aliciante possibilidade é a de, aos poucos, conhecer um dossiê iconográfico que inclui dezenas de fotografias de construções, estátuas, instrumentos de tortura, quadros, afrescos, gravuras, desenhos, cartas, folhas de éditos e frontispícios de obras impressas. Isto, sobretudo na edição de Lisboa -que em termos gerais obedece ao projeto gráfico definido para a "História de Portugal" de José Mattoso. O editor francês optou por reduzir as ilustrações, exibindo-as em preto e branco no meio de um volume que talvez possua a vantagem de com maior comodidade se ajustar à palma da mão. (Escusado discutir o eterno problema dos critérios de tradução, porque ambas as versões foram escritas pelo autor).
Por melhor que seja uma obra, dificilmente consegue "esgotar" assuntos que sempre motivaram tantas paixões. Francisco Bethencourt é o primeiro a admiti-lo: em vários momentos, questiona a confiabilidade dos números em que se apóia e sugere caminhos de pesquisa a trilhar por novos investigadores. Olhos mais exigentes poderão acrescentar que ficam por desenvolver três ou quatro boas idéias, além de se registrarem incômodas repetições. Em todo o caso, há que reconhecer neste trabalho virtudes singulares. Qualquer estudante que a partir de agora se aventure a compreender a inquisição moderna terá de referi-lo na sua bibliografia. Não existe outro livro que, com rigor e equilíbrio, apresente um tão alargado panorama sobre o tema. Circunstância que provavelmente ajuda a explicar por que ele recebeu o prêmio "Salvador de Madariaga", do Instituto Universitário Europeu de Florença, meia dúzia de resenhas elogiosas nos periódicos franceses e o inusitado privilégio de mais de 50 mil exemplares vendidos, só em Portugal.

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