São Paulo, sexta-feira, 10 de maio de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Tempo, dinheiro e poder

JOSÉ LUÍS FIORI

"Tudo o que peço é uma audiência paciente, e que o livro seja considerado e julgado como um todo, e não apenas por suas partes distintas."
G. Arrighi

as últimas décadas trouxeram uma interessante contribuição para os que ainda acreditam na possibilidade de uma sociologia do conhecimento. Durante esse tempo, o avanço das estruturas globais foi acompanhado de forma quase invariavelmente simétrica e inversa pelo "apequenamento" da teoria social. De tal forma que hoje, depois de aproximadamente duas décadas de investigação, refinou-se enormemente o nosso conhecimento sobre a história do queijo, o significado dos cheiros, a preferência sexual dos tupis-guaranis, o cálculo racional das galinhas e dos prisioneiros ou ainda sobre as curvas e flutuações conjunturais do desemprego, dos matrimônios e da inflação.
Mas é provável também que esta tenha sido a época em que as ciências sociais menos tenham ajudado os homens a compreender e situar-se no seu tempo. Em parte, exatamente porque abandonaram ou relegaram a um segundo plano a tradição da grande teoria e dos estudos históricos capazes de formular hipóteses um pouco mais audaciosas sobre o significado e a direção das transformações globais como esta pela qual estão passando o capitalismo e cada um dos seus subsistemas políticos e culturais.
Estas tendências, entretanto, podem estar sendo revertidas, à medida que vão chegando às livrarias obras mais recentes como "A Idade dos Extremos", de Eric Hobsbawm, e este magnífico "O Longo Século 20".
Arrighi não é certamente um economista ou um historiador do tipo convencional. Quem sabe por isso mesmo tenha conseguido escrever uma história econômica tão estimulante quanto fiel ao velho programa da escola dos "Annales", definido já há algum tempo de forma imperativa por Lucien Febvre: "Historiadores, sejam geógrafos, sejam juristas também, e sociólogos e psicólogos. Ponham abaixo os compartimentos!".
A investigação de Arrighi "visita e invade" estas e outras "ilhas do conhecimento social", recorrendo de forma inteligente às grandes hipóteses de Smith, Marx, Weber e Schumpeter como estratégia para entender e explicar a especificidade das transformações capitalistas que se iniciam nos anos 70 e assumem cada vez mais a forma de uma explosão financeira.
Tomando esta direção, aliás, ele estende até os nossos dias a pesquisa iniciada por Fernand Braudel sobre a "longue durée" da nossa "civilização material", numa perspectiva que retoma, aperfeiçoa e ultrapassa teoricamente a formulação original de Immanuel Wallerstein sobre o capitalismo como "a world economy". O produto final é este "Longo Século 20", que nos entrega uma releitura teórica extremamente original dos tempos lógicos e cronológicos, conjunturais e estruturais da história do capitalismo visto como uma sucessão de quatro ciclos sistêmicos de acumulação econômica e hegemonias territoriais. Quatro unidades de análise que permitem ao autor organizar teoricamente os padrões e recorrências desde o primeiro dos "séculos longos" da história capitalista, o século 16 estudado por Braudel.
Para chegar a esta conclusão, Arrighi percorre um longo caminho histórico orientado pelo conceito braudeliano de capitalismo: "a camada superior de uma estrutura em três patamares" sustentada, num primeiro plano, sobre a plataforma "não econômica da vida material" e, num plano intermediário, sobre "o campo favorecido da economia de mercado".
Para Arrighi, como para Braudel: 1) o capitalismo é a antítese da economia de mercado; 2) sua emergência e expansão se confundem com a do poder estatal, ponto em que coincidem com Weber; 3) sua distribuição de custos e benefícios em escala mundial depende em boa medida do "fator força", no que se aproxima da visão que Adam Smith tinha sobre a expansão asiática do comércio europeu; 4) por outro lado, explorando uma ambiguidade presente em Marx, ambos consideram que o capitalismo tem uma relação apenas instrumental e transitória com o mundo do comércio e da produção; 5) e, finalmente, para eles, do ponto de vista dinâmico -numa perspectiva que lembra Schumpeter-, o capitalismo destrói e cria, liderado por organizações cada vez mais amplas e complexas, como uma força que se expande na "zona do antimercado", onde o dinheiro adquire a capacidade sistemática e persistente de multiplicar-se a partir do momento em que "se identifica com o Estado, quando é o Estado", na expressão radical de Braudel.
É apoiado nesta base conceitual que Arrighi avança seguindo as pistas abertas pela hipótese de Weber sobre o papel da "competição interestatal pelo capital circulante", e de Marx sobre o papel das "dívidas públicas" na acumulação do capital, para acrescentar que, além disso, "a concentração do poder nas mãos de determinados blocos de órgãos governamentais e empresariais foi também essencial para as reiteradas expansões materiais da economia mundial capitalista".
Esta construção conceitual explica, por sua vez, as duas opções metodológicas estratégicas que fazem compreensível a condução da pesquisa de Arrighi.
A primeira, seguindo Marx, de abandonar "a esfera ruidosa da circulação" para poder entender o verdadeiro segredo da expansão dos lucros e do capital. Ocorre que, enquanto Marx busca sua solução no "domicílio oculto da produção", Arrighi, seguindo Braudel mais uma vez, propõe-se "acompanhar o dono do dinheiro até outro domicílio oculto que fica um andar acima e não um andar abaixo do mercado. Ali onde o dono do dinheiro encontra-se com o dono, não da força de trabalho, mas do poder político, e onde se esconde o segredo dos grandes e sistemáticos lucros que permitiram ao capitalismo prosperar".
E a segunda, que decorre diretamente da opção anterior e postula que as expansões e reestruturações da economia capitalista mundial têm ocorrido sob a batuta de "um alto comando" governamental e empresarial, que se articula em redes que sempre foram globais e obedeceram a centros de decisão que estiveram concentrados em cada uma das sucessivas potências hegemônicas. Por isso, sua história acompanha de forma mais minuciosa as decisões e processos que se expandem, se articulam e se sucedem mundialmente, a partir do século 14, concentrados a cada novo ciclo de acumulação em Gênova, Amsterdã, Londres e Nova York.
Do ponto de vista teórico, a pesquisa de Arrighi, ao identificar as recorrências cíclicas, também permite demonstrar que, historicamente, o objetivo central que move o capitalismo é a multiplicação da riqueza abstrata, e não o aumento da produção material ou do comércio. É por isso que o autor lança mão da fórmula geral do capital apresentada por Marx (DMD) para sintetizar a lógica interna de cada um dos ciclos de acumulação, cujo padrão repetitivo "é a alternância de épocas de expansão material (fase DM) com fases de renascimento e expansão financeiros (fase MD). Nas primeiras, o capital monetário põe em movimento uma massa crescente de produtos; nas segundas, este mesmo capital liberta-se do seu compromisso com as mercadorias e acumula-se sob a forma financeira", anunciando, nas palavras de Braudel, o "outono" de mais um ciclo de acumulação. Tempo, por outro lado, em que estarão se gestando, em outros espaços, as estruturas e estratégias que deverão comandar o novo regime, dando curso ao movimento permanente de globalização das estruturas e instituições capitalistas.
Durante essas fases de expansão financeira, que se estendem entre o que Arrighi chama de "crises sinalizadoras" (como foi mais recentemente a de 1973) e as "crises terminais" repetem se as "belles époques" durante as quais o fim da expansão material dá lugar a "momentos maravilhosos" de renovação da riqueza e do poder dos seus promotores. Mas estes também têm sido momentos que vêm acompanhados quase invariavelmente por uma intensificação da competição empresarial e intergovernamental e por um "caos sistêmico", definido pelo aumento da polarização e dos conflitos sociais e pela diminuição dos poderes estatais já agora prisioneiros dos mercados financeiros. Foi o que aconteceu no fim da hegemonia genovesa, holandesa, inglesa e está ocorrendo agora durante a crise norte-americana.
Se as "crises sinalizadoras" são mais facilmente identificáveis e datadas (1560 no caso genovês, 1740 no holandês e 1870 no inglês), as "crises terminais" tendem a ocorrer de forma mais difusa e imprecisa, na medida em que são simultaneamente o tempo de afirmação das novas hegemonias emergentes. Por isso, se a crise dos anos 70 sinaliza o início do fim da hegemonia americana, ela não nos permite antecipar nem a duração nem o final desta nova "belle époque financeira".
Neste livro, Arrighi analisa o potencial e os limites da hipótese que vê no Japão ou no "arquipélago capitalista asiático" a nova liderança emergente da economia mundial. Em outros trabalhos recentes, tem explorado a hipótese de que os novos caminhos do capitalismo venham a passar no próximo milênio pela China articulada com as "cidades-estado financeiras": Hong Kong, Cingapura etc. Numa espécie de movimento pendular, que nos levaria de volta ao padrão de "intercâmbio político" estabelecido, no século 16, entre a lógica expansiva e desterritorializada das finanças genovesas e a lógica expansiva e territorializada do poder imperial ibérico. Mas isto já são especulações.
Se a teoria de Arrighi estiver certa, ela poderia estar sugerindo algumas lições úteis, mesmo para uma província muito distante da "vanguarda" deste capitalismo global. Como vimos, todos os quatro ciclos de acumulação terminaram em momentos de intensa expansão financeira e, em todos esses casos, a "financeirização" do capital alimentou-se da competição interestatal e a "dívida pública" passou a ter um papel central na maximização da "capacidade de multiplicar-se do dinheiro".
Nas palavras de Arrighi, "à medida que se intensificaram as pressões competitivas e que houve uma escalada na luta interestatal, o capital cedente, que já não encontrava investimentos lucrativos no comércio, foi mantido em estado de liquidez e usado para financiar a crescente dívida dos Estados, cujo patrimônio e receita futura foram, assim, mais completamente alienados a suas respectivas classes capitalistas". Foi no norte da Itália, nos séculos 14 e 15, que estes processos foram observados pela primeira vez, e talvez tenha tido ali sua versão mais simples e transparente: a expansão da dívida pública acabou obrigando o governo de Gênova a repassar, em 1407, o controle das suas finanças para a Casa di San Giorgio, grupo financeiro criado pelos credores para administrar o Estado. Sendo que, em Florença, a mesma falência obrigou as autoridades locais a entregarem o poder político diretamente para a Casa dos Médicis, o principal credor bancário da cidade.
Não é improvável que já estejamos vivendo em nossas terras algo análogo, apesar de duas diferenças fundamentais. Por um lado, nossos governantes ainda seguem publicitando soluções fictícias e protelatórias, apesar de cada vez mais prisioneiros dos interesses bancários. E, por outro, existem poucos sinais de que nossos banqueiros estelionatários algum dia abdiquem de seu consumo ostentoso e de gosto estético discutível para seguir o caminho dos banqueiros italianos. Afinal, como nos relembra Arrighi, a expansão financeira do Norte da Itália pelo menos nos deixou o Renascimento.

Texto Anterior: A herança dos santos
Próximo Texto: Rede de intrigas
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.