São Paulo, sexta-feira, 10 de maio de 1996
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Sobre a nossa pré-história recente

ROBERTO SCHWARZ

como a professora Iná polemiza em várias frentes, para não dizer em todas, o leitor corre o risco de não notar que está diante de um livro de concepção refinada e incomum. Resumindo ao máximo o seu argumento, digamos que se trata de estudar o capítulo brasileiro da história do teatro épico moderno, o qual de força produtiva passou, num segundo tempo, a artigo de consumo. O olho para mudanças desse tipo, em que as intenções dão no seu contrário, caracteriza o espírito desabusado da autora.
Observe-se que a idéia do livro pode parecer forçada. O teatro épico do título, com a sua órbita planetária e um episódio brasileiro, mais a ressonância subversiva, não será uma assombração? Ele não estaria funcionando como um fantasma transatlântico, parente aliás do outro, que rondava a Europa e ocasionalmente se encarnava?
Com a queda do muro em Berlim, quando as contradições do capital saíram de moda, a ala dos ressabiados se dividiu: para os desiludidos da revolução, a dinâmica interna de classes perdia o peso; já para os cansados do antiimperialismo, era o nexo global que deixava de contar, a culpa do atraso devendo se explicar e atribuir dentro do país. Uns e outros concordavam em esquecer o vínculo problemático entre os dois âmbitos, ou seja, coincidiam na liquidação da dialética.
Nesta linha, voltando à crítica literária, por que não ficar na crônica empírica e local do que realizaram o Teatro de Arena, o CPC, o grupo Opinião e o Oficina, o mais das vezes com verve e, salvo para o último, sem grande pretensão de arte? E, uma vez que o assunto tangível era este, a referência a um processo de transformações mundiais, que além do mais deu em nada, teria mesmo cabimento? Por outro lado, se o interesse estava na irradiação das posições de Brecht, por que não estudar singelamente e caso a caso a recepção de sua obra no Brasil, que não se limitou àquele momento, nem compõe um todo unificado?
A encenação de "Eles Não Usam Black-tie", em 1958, cujo êxito inesperado abria um período, forma o ponto de partida do livro. Em sequência rápida e encadeada, São Paulo e Rio veriam mudar os assuntos, a dramaturgia, a platéia, a forma da empresa teatral e a própria ligação da cultura com a dominação de classe. Pela primeira vez no teatro brasileiro a greve operária e as suas questões políticas e morais figuravam no centro de uma peça. No ambiente jovem do Arena, próximo ainda das lutas estudantis, o novo tema refletia a subida do movimento popular, que modificava o debate cultural ao lhe levar as suas preocupações. Por seu lado, o público que manteve o espetáculo em cartaz durante mais de um ano também era diferente, anunciando a radicalização da próxima fase: uma platéia mais moça, politizada e informal, com birra das elites e ligada às reivindicações sociais de que o teatro anterior não se ocupava.
As consequências da matéria operária para a forma dramática são uma especialidade de Iná, que as estuda com precisão notável. Com efeito, a convenção do drama burguês, para a qual o diálogo entre indivíduos é o fundamento último da realidade, exclui do teatro as dimensões decisivas da vida moderna, que são de massa. A solução encontrada por Guarnieri na sua peça ilustra bem o problema. Em cena, vemos os conflitos individuais dos operários, ao passo que a greve, que é o centro de tudo, tem presença apenas indireta, por meio de comentários e discussões. Noutras palavras, o principal está fora do palco, e deve a existência a procedimentos com fundo narrativo (por oposição a dialógico), que do ponto de vista da regra do gênero são outros tantos defeitos. A não ser naturalmente que o gênero é que esteja superado. Seja como for, a crítica na época notou e apontou o deslize, identificado como baixa da tensão literária. Assim, a ordem do dia passava a incluir a contradição entre a forma dramática pura e, do outro lado, as novas realidades sociais e as técnicas necessárias à exposição teatral destas.
Firmada a perspectiva, a reorientação da dramaturgia foi rápida. Contrastando com a concepção otimista de Guarnieri, "A Revolução na América do Sul", de Boal, descobria para a cena a figura do trabalhador caricatamente inerme, sem qualidade dramática alguma, vítima despreparada da contra-revolução em marcha: o achado crítico era este mesmo. Pouco depois, já que a intenção era pedagógica, Vianinha dava outro passo e inventava um modo cênico, aliás muito engraçado, de explicar o conceito de mais-valia. Nesta altura a convenção dramática burguesa estava aposentada, os destinatários do espetáculo passavam a ser estudantes e populares, bem diferente do público pagante das salas convencionais, e os próprios atores, mobilizados para as tarefas do agit-prop, vulgo CPC, se haviam reconvertido a uma espécie de amadorismo engajado. A transformação não podia ser mais completa.
Como assinala Iná, a pressão das novas realidades econômicas e operárias sobre a convenção do drama burguês não fazia do Brasil um caso à parte. Do naturalismo em diante, a evolução do teatro europeu pode ser vista em termos dela. Mas é fato que Guarnieri, muito jovem, de esquerda e pouco afinado com o vanguardismo artístico, descobriu por conta própria alguns passos daquele percurso clássico. A convergência entre a luta de classes, a crítica à norma canônica do drama e a elaboração de formas de teatro narrativo estava sendo reinventada localmente, bem engrenada com as condições culturais e políticas do momento. É claro que em seguida o corpus das experiências e teorias européias a respeito seria assimilado com avidez, mas rebatido nestas condições, que tornavam francamente produtiva a sua entrada.
Por outro lado, sabe-se que o questionamento da norma dramática na Europa havia corrido paralelo à crise da ordem burguesa ela própria, assim como o surgimento do teatro épico viera de par com as novas realidades populares e as perspectivas de revolução social. Nestas circunstâncias, o direito histórico das formas literárias e a luta entre elas participavam do caráter decisivo dos tempos e não se esgotavam no campo da arte. A paixão despertada pelo teatro e pelas teorias de Brecht sempre teve a ver com este estatuto híbrido, como recordam os seus admiradores. Na década de 50, contudo, sobretudo vista de hoje, parte dessa aura possivelmente já fosse ideologia.
Dito isto, salta aos olhos que a norma do drama burguês no Brasil não vinha sustentada por uma tradição de bons escritores, nem codificava as convicções efetivas de nossa elite, para a qual o individualismo burguês era no máximo uma angústia prestigiosa, bem distante dos funcionamentos locais. Assim, o nosso teatro épico surgia com autenticidade, ligado ao ascenso da luta popular, mas não se contrapunha a nada de artística ou ideologicamente forte. O Teatro Brasileiro de Comédia, que no caso funcionou como o bastião da cena burguesa, era ele mesmo uma inovação recente, criada pelo desejo paulistano de mudança e atualização. Talvez se prenda a esta falta de adversário enraizado a qualidade literária em fim de contas modesta das peças nascidas de um movimento tão vivo, que deu encenações tão brilhantes. Há bastante que aprender sobre nós mesmos com a feição meio inventiva e meio rala tomada pelo teatro épico nestas bandas, feição ligada à diferença das sociedades e das ocasiões históricas. É um assunto apontado por Iná, que merece mais exploração.
Noutras palavras, estamos diante da construção de nossa pré-história recente, buscada na sua complicação e através do teatro. Trata-se de estudar as ligações internas entre o acirramento social que levaria a 64, os novos assuntos, esperanças e belezas que lhe correspondiam, as contradições formais engendradas, as grandes defasagens internacionais, o tipo de dominação de classe e de hegemonia cultural, a presença conhecida mas pouco analisada do stalinismo etc.
De outro ângulo, digamos que Iná compôs um objeto complexo, na melhor tradição da dialética materialista: as questões de arte (como as demais) são objetivas, transcendem o indivíduo, e o encadeamento em formação é uma força produtiva, que encontraria os seus limites internos se antes disso não topasse com a força bruta. A diversidade e precisão dos conhecimentos da autora é tão considerável quanto discreta. Sempre ágil e minimalista, a prosa vai por exemplo da análise engenhosa das sequências dramáticas à notícia pormenorizada sobre a repressão ao teatro épico em Alemanha, URSS, França, Itália, Estados Unidos e Uruguai, ou à discussão do que seria um socialista para um stalinista no Brasil dos anos 30, questão filológica sem a qual alguma coisa do teatro de Oswald passaria em branco.
Por nosso resumo o leitor terá notado que a opacidade da teoria literária atual não comparece no livro, que na boa tradição dos estudos dialéticos prefere, sempre que possível, entender as matérias em termos de relações históricas e sociais. Neste sentido espero não errar achando que se trata de um convite, pelo exemplo, ao uso efetivo da inteligência, à multiplicação das observações, à pesquisa de ligações reais e ironias objetivas, aos raciocínios longos e complexos, em suma, à reflexão literária de nível.
Com o golpe de estado de 1964, a trajetória que acompanhamos ficou interrompida. Como era inevitável, o teatro em parte reagiu, em parte se ajustou, e em parte se ajustou reagindo. Estas marchas e contramarchas, brilhantemente analisadas, já vão formando o nosso chão de hoje. Havia começado o segundo tempo do ciclo e do livro, em que o teatro épico passava de força produtiva a artigo de consumo. Um aspecto marcante desta evolução foi a unanimidade, com algo de exorcismo, que se formou contra o CPC.
Deixando de lado a direita, que não tinha mesmo por que gostar de um trabalho de esquerda, houve o arrependimento dos próprios cepecistas, que acompanharam com autocrítica e tudo o recuo do Partido Comunista, o qual nunca apreciara a arte moderna e agora procurava se distanciar da subversão. Houve também a militância concretista, que sublinhava a diferença entre a sua inovação "rigorosa" (?) e o populismo regressivo dos poetas do "Violão de Rua". Quanto a isto, a ousadia da experimentação formal que Iná identifica no teatro cepecista lança uma luz surpreendente sobre o debate, e seria bem interessante que um espírito desprevenido da nova geração o examinasse de mais perto. E houve enfim a inesperada reação da intelectualidade que viria a ser do PT e que, parte por anticomunismo, parte por catolicismo, parte por ouvir os concretistas e parte por uma espécie de purismo melindroso no trato da cultura popular, fez do CPC e de suas iniciativas a encarnação mesma do espírito de Stalin (!).
Não sendo sócia de nenhum destes partidos, e tendo a clara opinião de uma trotskista esclarecida a seu respeito, a autora vai encontrando as expressões certeiras de que precisa para caracterizar o recuo geral. Talvez seja o caso de saudar em sua escrita pouco dada à conciliação a entrada em cena deste ponto de vista especial, polêmico e clarividente onde outros se calam, e dotado naturalmente de parcialidades pronunciadas (às vezes cabeçudas, acredito eu, como na cegueira para a posição à parte de Décio de Almeida Prado).
Ao descrever e analisar a evolução teatral neste segundo período, postas de lado as intenções e fixada a atenção nas mudanças técnicas objetivas, Iná faz ver encadeamentos meio involuntários que dão frio na espinha e mostram o que pode a crítica literária como explicação e comentário da realidade.

NOTA
O texto acima reproduzido é o prefácio do livro "A Hora do Teatro Épico no Brasil", editado pela Graal.

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