São Paulo, sexta-feira, 10 de maio de 1996
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O naufrágio do Marialva

ALCIR PÉCORA

Desde que Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810?) foi deportado para Moçambique, em 1792, muito se especulou a respeito de sua vida africana: casou-se com uma rica herdeira, associou-se a uma casa exportadora de escravos, romanticamente enlouqueceu etc. De seguro, porém, pouca coisa. Mesmo o poema "A Conceição", cujo manuscrito autógrafo foi comprado pela Biblioteca Nacional em 1910, lá permaneceu obscuramente até que Rodrigues Lapa o encontrasse, em 57. Ademais, o conjunto do poema estava inédito até agora, quando vem à luz em rigorosa edição crítica e valiosa introdução de Ronald Polito de Oliveira. Trata-se de uma epopéia marítima, que refere, segundo notas de época, o naufrágio do navio "Marialva", ocorrido em 1802, próximo a Moçambique, que vitimara mais de cem pessoas e do qual Gonzaga conhecera detalhes pelos sobreviventes. Entretanto, as 22 folhas compradas pela BN, ora publicadas, são apenas um fragmento do poema, de extensão ignorada: duas folhas são do Canto 1, as demais do 3 e 4.
Escrito em decassílabos heróicos, raros sáficos, em versos brancos, com número irregular por estrofe, a intriga do poema, da forma que nos chega, centra-se na disputa entre Palas e Vênus pela condução dos nautas lusos: a primeira, buscando mostrar-lhes a necessidade de retomarem seu alto destino nas navegações, que lhe trouxessem honras e bens sublimes, e a segunda, empenhada em empregá-los em deleites sensuais.
As quatro páginas que restam do Canto 1 são uma fala invocativa do próprio poeta, sem referência explícita à ação posterior do poema. Num fragmento, os perigos da navegação surgem associados ao tempestuoso da fortuna frente à segurança divina; num outro, com estrutura paralela, o louvor da ventura toma a forma do desengano amoroso, quando após tormentos excessivos, que não pareciam admitir salvação, revigora-se afinal o moribundo.
Saltamos infelizmente do canto 1 para o 3, onde vemos Palas indignada com a corrupção dos portugueses, que não deixam a terra, tendo ajustado um novo encontro com as ninfas de Vênus e esquecidos já das ações heróicas no mar. Dirige-lhes um discurso de exortação aos brios, aplicando ao caso a tópica estóica da superioridade das conquistas difíceis dos bens sublimes sobre a entrega aos prazeres, que apenas geram fraqueza. Na versão senequista, trata-se da tópica da "vida como milícia", isto é, de que "viver é assunto de soldados": a educação do espírito dos melhores exige constância, firmeza criada na superação de provas, contrariamente à vida de afetações mundanas que viciam e desterram a alma. Amplificada em registro cômico, a fraqueza derivada das facilidades é escarnecida por Palas como afeminação. Enfeitando os peitos que deveriam estar feridos, os portugueses traíam o reto destino de sua gente. A tais argumentos, Palas ajunta uma prova extratécnica: num gesto breve, passa o escudo sobre as cabeças dos lusos e os faz recuperar o antigo ânimo, dispondo-se a deixar o porto dos prazeres, no caso, o Rio de Janeiro, e dirigir-se para a árdua costa africana.
O segundo passo da estrutura do canto põe a deusa rival em cena. Vênus, irada com a partida dos portugueses, convoca o deus que preside o porto e representa-lhe suas queixas, semelhantes à do Baco lusíada, em que a ação portuguesa é acusada de subverter a natural hierarquia e pretender que os humanos sejam maiores que os deuses. Admitindo o mau exemplo de um delito sem pena, o deus concorda em castigá-los.
Se o discurso de Palas nos dá a tese, e o diálogo de Vênus, a antítese, não se segue de imediato uma síntese, mas ação violenta. O deus do Rio ataca o navio com a turbulência de suas águas, que entretanto é protegido por Palas, de uma forma quase anticlimática, sem grande esforço: com os olhos, simplesmente estaca a corrente e ordena ao nume que se submeta a uma deusa que lhe é superior. Os navegantes, como nos "Lusíadas", têm pouco a fazer em meio àquela disputa divina; mas aqui, também esta disputa se sustenta mal, tamanho o poder de Palas.
A síntese deste terceiro canto vem na forma de uma peroração do poeta, que fornece uma interpretação moral, e anedótica, do combate: as lutas bem poderiam se explicar como uma guerra de mulheres que não sofrem jamais o menoscabo de sua beleza. O modelo aqui é Homero, quando fez seguir da disputa frívola de três deusas a sanguinária guerra de Tróia. Por fim, retoma a tópica da vida como milícia, associada à chave providencialista que a própria matriz senequista não ignorou: infortúnios não são acaso, mas decreto que visa revelar o valor dos excelentes.
O Canto 4 já posiciona a nau próxima à costa africana, passados apenas 6 dias de viagem, o que, como nota Polito, parece inverossímil. Em relação à estrutura do canto anterior, este já começa pela segunda parte, a antítese de Vênus, que dialoga com Éolo, deus dos ventos, para convencê-lo a atacar o Marialva. Polito chama a atenção para o interesse da passagem, que creio mesmo ser a melhor que nos restou. A sedução do deus por Vênus dá-se pela oferta de 9 de suas ninfas, a escolher, em troca da destruição da nau portuguesa. Éolo mostra à deusa que uma oferta tão excessiva faz do serviço o simples efeito de uma paga, e isto o desmerecia. Tudo estava em encontrar uma acomodação adequada entre o prêmio e a qualidade do serviço, de modo a que a paga não determinasse unilateralmente a ação, caracterizando-a como venal. Propõe-lhe portanto que o serviço celebre não um "vil contrato", mas um favor que permitisse reunir as casas de ambos; para isto, uma ninfa de seu séquito bastava. O acordo entre excelência e negócio faz-se, com honra, quando se unem as casas divinas e jamais quando se quita como simples paga uma dívida localizada. O modelo aristocrático reafirma-se aqui, mais burocratizado e formal, contra o arrivismo dos negócios e a sem-cerimônia burguesa.
Mas este não é o único acerto proposto por Éolo, para que a ação destrutiva não resulte desonrosa. A restrição ao número de ninfas e a aliança das casas acomoda igualmente os "ardentes desejos" à dignidade. Vê-se pois que, também pelo lado de Vênus, nas aparas realizadas em seu discurso por seus interlocutores, repõe-se algo do próprio discurso de Palas. Apenas que aquilo que nesta é diretamente condenado como vício, nos diálogos o é como impropriedade a ser superada pela negociação. O que, em Palas, é imperativo ético-aristocrático (a milícia frente ao amolecimento do caráter), nos diálogos de Vênus é acomodação possível do prazer aos mesmos imperativos, que, aliás, parecem aqui melhor resolvidos, pois o discurso de Palas atende mal à gravidade exigida, e facilmente cede ao cômico.
Mas a chave desse diálogo notável de Vênus está no elogio que faz da "urbanidade" de Éolo, quando este se recusa a conhecer a afronta sofrida por ela, para não fazer de seu serviço o efeito de um julgamento, e dele um juiz, lugar hierárquico que reserva exclusivamente a ela, não lhe cabendo senão executar a sentença. É esta urbanidade do Direito que justamente ameniza ou ajusta os conflitos entre a justiça do prêmio, o valor da paga e o mérito da ação, evitando a venalidade, assim como acomoda os apetites e a prática amorosa honesta, evitando a incontinência.
E esta mesmíssima deusa, comovida com a civilidade de Éolo, pede-lhe sedutoramente que aniquile com vagar os lusos, para que sofram mais. Nenhuma contradição é suposta aí. Pois, por um lado, faz parte da conformidade com o caráter cru das deusas a prevalência da vingança; por outro, a civilidade entre aliados também é própria, pois indica não só a galanteria, entre pares de sexo diferente, e o respeito hierárquico, mas a própria estrutura burocrático-jurídica dos ajustes essenciais ao corpo social.
A sequência do canto é idêntica à do anterior: do diálogo de Vênus segue-se a ação de vingança. Éolo liberta o Noto que ataca ferozmente o navio. Para Polito, é este o melhor momento dos fragmentos. Ressalta o domínio dos termos de marinharia, visível em outros poemas de Gonzaga, e a sucessão de quadros onde pincela a agitação dos marinheiros sob o ímpeto da tempestade. É um belo momento. Pena que acabe cedo demais: como do outro ataque, a ação se frustra com o tipo de intervenção onipotente de Palas, que torna pouco funcional toda a movimentação, tanta a aliada, desnecessária, quanto a inimiga, fulminada com seu simples olhar.
A síntese, que no outro canto se dava pela fala do poeta, é adiada e, ao mesmo tempo, camonianamente figurada no passeio de Anfitrite e seu séquito de ninfas que parecem cruzar o caminho da esquadra portuguesa. O passo é delicioso como poesia erótica marítima e, confirmando a hipótese de Jorge Ruedas em seu "Arcádia: Tradição e Mudança", aproxima Gonzaga dos árcades lusos do grupo Ribeira das Naus -camonianos, arcaizantes e dispostos a estender a ficção pastoril às paisagens marinhas. Ademais, o tratamento da cena impressiona pela visualização: o clímax do episódio revela a "alcatifa matizada" que alterna a alvura dos corpos nus das ninfas com o verde das águas. A cena desmente cabalmente, como já alerta Polito, o moralismo crescente atribuído a Gonzaga por Rodrigues Lapa. A cena é sensualíssima e as alterações feitas no manuscrito de modo algum a negam.
Confirma-se aqui o mesmo que o diálogo de Vênus com Éolo deixava claro: o prazer não é inconciliável com o valor, mas deve ser o seu prêmio, não o meio de sua efetivação. O que Vênus não parece ajustar corretamente é o aprazível de suas prendas ao decoro da bravura, pretendendo-o como excesso vicioso. E, segundo creio, não é Palas propriamente que sintetiza a posição mais essencial do poema, mas os interlocutores de Vênus: a inclinação primitiva para o prazer é submetida à análise de sua legitimidade e ao acerto das condições necessárias para conciliá-los. Em termos de matriz antiga, enquanto avança o poema, Gonzaga parece recuar do Sêneca filho ao pai, o retor.

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