São Paulo, sábado, 11 de maio de 1996
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Mudaria o Natal ou mudei eu?

RUBENS RICUPERO

Nada ilustra melhor a profunda transformação na economia mundial nestes 30 últimos anos do que a diferença entre a primeira e a nona Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad).
Criada em 1964 para ser o principal foro de análise e deliberação sobre a economia mundial, a Unctad foi, em grande parte, o resultado da poderosa influência do economista argentino Raúl Prebisch, cujas idéias marcaram profundamente a evolução da América Latina e a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina (Cepal).
Em oposição à teoria clássica do comércio internacional de David Ricardo, Prebisch denunciou o sistema mundial de comércio como um mecanismo perverso de transferência da riqueza dos países subdesenvolvidos da periferia às economias industrializadas do centro.
Essa transferência se faria pela "deterioração dos termos de intercâmbio", isto é, pela constante queda dos preços dos produtos primários exportados pelos subdesenvolvidos, em contraste com a elevação dos preços dos equipamentos e manufaturas exportados pelos industrializados.
O sistema mundial tenderia, portanto, a perpetuar o subdesenvolvimento, concentrar a riqueza e aumentar disparidades, por uma espécie de apropriação da mais-valia na escala de países e não de indivíduos.
A fim de romper o círculo vicioso, a receita de Prebisch era a industrialização pela substituição das importações, promovida pelo Estado por meio de barreiras de proteção às indústrias nascentes.
No cumprimento desse programa, a Unctad se propunha a mudar o "status quo" criado pelas instituições de Bretton Woods -o FMI e o Banco Nacional- mais o Gatt, dominados pelos ricos.
Dentre as realizações concretas da Unctad contam-se três grandes iniciativas:
1) A criação do Sistema Generalizado de Preferências, que possibilitou aos subdesenvolvidos exportarem dezenas de bilhões de dólares aos mercados industrializados.
2) As propostas que inspiraram os planos para resolver a crise da dívida, não só pelo seu reescalonamento, mas também pela sua redação.
3) Os acordos de estabilização dos preços dos produtos primários, como o café e o cacau, abandonados mais tarde, com graves prejuízos para os exportadores desses produtos.
Nunca se conseguiu, porém, dar expressão concreta e não apenas retórica ao que foi o "grande desígnio", o projeto principal da Unctad: o estabelecimento de uma nova ordem econômica internacional, mais equitativa, capaz de reduzir o abismo entre ricos e pobres e de dar a estes melhores condições de competir na economia internacional.
Havia, talvez, uma ingenuidade básica em crer que se poderia, mediante negociações diplomáticas, mudar a correlação de forças e promover reformas profundas que permitissem alguma redistribuição da riqueza mundial.
Na realidade, a economia mundial mudou radicalmente. Mas a mudança não foi no sentido esperado e resultou de profundas forças históricas.
O que hoje se denomina "globalização", ou seja, a unificação do espaço econômico em um único mercado global, teoricamente destinado a assegurar a livre circulação de bens, investimentos e fluxos financeiros, originou-se de uma variedade de causas.
Algumas foram políticas, como o colapso do comunismo e da URSS e a afirmação das economias de mercado. Outras foram de natureza tecnológica, como as inovações em transportes, comunicações e eletrônica, que possibilitaram transmitir dados e fluxos financeiros e integrar as etapas de produção em escala planetária.
O novo nesse processo foi a crescente participação de alguns países em desenvolvimento, sobretudo na Ásia e uns poucos na América Latina, nas oportunidades de exportação criadas por essas tendências.
Esses países se tornaram os de crescimento mais rápido no mundo -novas locomotivas da economia mundial, as de maior êxito na exportação de manufaturas de conteúdo tecnológico cada vez mais sofisticado e os grandes importadores, que hoje absorvem boa parte das exportações dos EUA e da Europa.
Não é de admirar, assim, que, em lugar do "pessimismo exportador" do tempo de Prebisch, os países em desenvolvimento queiram todos, hoje, imitar o êxito dos asiáticos e crescer pelo comércio exterior.
É isso o que explica que a 9ª Unctad, concluída hoje na África do Sul, tenha se concentrado não em discussões ideológicas, mas em idéias práticas para maximizar as oportunidades trazidas pela globalização e minimizar os seus eventuais riscos de marginalização.
Pode-se dizer, no fundo, que há 30 anos a Unctad se propôs a mudar o mundo, mas afinal o mundo é que mudou e acabou por mudar a Unctad.

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