São Paulo, domingo, 12 de maio de 1996
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Não é preciso corromper para ser empreiteiro

EDUARDO RIBEIRO CAPOBIANCO
Durante décadas, séculos mesmo, as palavras "corrupção" e "empreiteiro" estiveram associadas como uma dobradinha na mente do brasileiro. Ao se ouvir uma, imaginava-se que mais cedo ou mais tarde a outra também seria mencionada.
Sempre houve motivos concretos para isso. Desde o tempo do Império, o fornecimento de bens e serviços para o Estado esteve relacionado com esquemas do favorecimento.
Como conta Jorge Caldeira, em seu "Mauá, Empresário do Império", o barão de Mauá, nosso primeiro capitalista, só conseguiu fazer a primeira metalúrgica brasileira funcionar depois de se acertar com figuras-chave do gabinete que pouco mais tarde ele próprio passaria a integrar.
Daí por diante, Mauá (entre cujas multifacetadas atividades se incluiu também a empreita de obras públicas) faria imensa fortuna aproveitando-se de privilégios concedidos pelo poder.
Esse tipo de relacionamento do Estado com seus fornecedores privados transformou-se em padrão, observado mais exemplarmente a partir da construção de Brasília e ao longo de todo o regime militar.
Evidentemente, o fenômeno do favorecimento exige a concordância de dois participantes: o administrador público, que usa sua posição para auferir vantagens (pessoais ou, o que é mais comum, de grupo -quadrilha seria uma denominação melhor); e o fornecedor inescrupuloso, que busca alijar a concorrência.
Claramente, o ponto crucial é a possibilidade de o administrador público interferir no processo de concorrência: quanto mais ele possa exercer seu próprio arbítrio e quanto menos ele tenha que se pautar por regras impessoais, mais ele terá condições de dirigir o resultado.
Por isso as dimensões variadas que a roubalheira assumia. Ela sempre dependeu de quem estivesse no poder (tanto federal quanto nos Estados e municípios), pois, naturalmente, administradores venais atraíam empreiteiros venais. Isso, por sua vez, provocava o efeito secundário de colocar os demais participantes do mercado na difícil posição de ter de decidir entre entrar no jogo da corrupção ou fechar as portas.
Até 1993, a legislação brasileira que trata de licitações (concorrências) dava ao administrador muitas oportunidades de decidir com base em fatores subjetivos e, portanto, era bastante vulnerável quanto às oportunidades do dirigismo.
Naquele ano, promulgou-se a lei 8.666, dita das Licitações e Contratos. Concebida de forma radicalmente diferente de suas antecessoras, a 8.666 limitou bastante as prerrogativas do administrador.
Não podendo mais este último definir arbitrariamente critérios restritivos de qualificação e julgamento de licitações, perdeu ele o principal atributo de que dispunha para atrair avanços de fornecedores desonestos.
E isso abriu às empresas honestas uma possibilidade com que outros setores sempre contaram: pautar suas decisões em critérios exclusivamente empresariais.
De acordo com a lei atual, uma vez que a empresa satisfaça a critérios de qualificação econômica e técnica especificados na própria lei, e desde que demonstre ter acesso aos recursos humanos necessários para cumprir a tarefa licitada, basta orçar e oferecer um preço.
Quer dizer, basta procurar soluções organizacionais e tecnológicas que, de acordo com seu próprio julgamento, lhe permitam realizar o trabalho e obter lucro.
Caso vença a licitação -isto é, caso seu preço seja o menor-, poderá executar o serviço sem estar amarrada a qualquer compromisso de natureza "política" (isto é, financeira). E receberá, em estrita ordem cronológica, o que antes não era especificado na lei e dava lugar a outra modalidade de corrupção, desta vez ligada a favorecimentos na colocação na fila de recebimento.
Em outras palavras, o empreiteiro não precisa mais corromper para trabalhar.
Como esperado, contudo, tanto empreiteiros que preferem o caminho da corrupção, como administradores (seus parceiros) detestam a metodologia da lei. Eles buscam por todos os modos subverter o princípio básico da impessoalidade, atribuindo-lhe defeitos diversos.
É muito interessante notar que, na especificação de tais defeitos, os que advogam uma "revisão profunda" da 8.666 apelam para uma pretensa necessidade de "agilizar os procedimentos do Estado". Dizem eles que a lei "atravanca" a decisão do administrador público, como se isso fosse indesejável.
Ora, foi precisamente a limitação que a lei impôs ao exercício da vontade do administrador que permitiu a virtual eliminação dos mecanismos de corrupção em concorrências. O que a lei de fato "atravanca" é a possibilidade de administradores e empreiteiros desonestos entrarem em conluio.
Assim, os motivos apresentados em favor de uma "agilização" dos processos de licitação são precisamente os motivos que o cidadão consciente mais deve abominar.
E, para o empreiteiro que quer simplesmente exercer sua atividade e dela obter o benefício capitalista do lucro honesto, um retrocesso nesse terreno significaria condená-lo de novo a optar entre ser corruptor ou deixar de ser empreiteiro.
Eduardo Ribeiro Capobianco, 42, é presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo (Sinduscon-SP), presidente da Comissão de Obras Públicas da Câmara Brasileira da Indústria da Construção e diretor-superintendente do Grupo Construcap.

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