São Paulo, domingo, 12 de maio de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A eutanásia da biografia

JOSÉ MARIA CANÇADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há na poesia de Orides Fontela um acontecimento pleno de interesse e uma operação secreta. O primeiro, o acontecimento, consiste no fim de toda salvação biográfica, e no surgimento de uma espécie de ascensão do sujeito. "Tudo/ acontece no/ espelho", escreveu Orides Fontela em "Narciso", um dos poemas deste seu sexto livro. É um acontecimento pleno sim de interesse. E não porque essa desaparição do biográfico se dá na poesia de quem, como essa poeta paulista, ficou aqui e ali conhecida por episódios mais ou menos infelicitados na sua vida, dos quais de resto é ela que, hoje com 55 anos, sempre sai mais esfacelada e com mais agruras de professa aposentada e inquilina ameaçada. "Sou a poeta mais pobre do Brasil, páreo para mim só o Cruz e Sousa", ela costuma dizer.
Claro que o absoluto do interesse mencionado acima vem de outro lugar. Vem do fato de Orides Fontela, de uma maneira lacônica e desassombrada, arrancar dessa espécie de interrupção, de seccionamento, de eutanásia, vá lá, das linhas e dos incidentes biográficos, um máximo de experiência lírica e espiritual. Em poesia, só os torsos seccionados (como o de Apolo entrevisto por Rilke) costumam esplender.
Verdade que sem a "integridade requintada e sobranceira" dessa poesia, e que Antonio Candido assinalou no prefácio de "Helianto" (publicado em 1973, pela Duas Cidades), o tom talvez viesse a ser constrangedor. É bem o contrário: o que há é uma lei severa, uma inscrição meio heróica, um "es muss sein" (um "isso tem de ser"). Ela escreve: "... nunca temos/ álibi: por força, estamos/ aqui".
Há também uma operação secreta nessa poesia. E neste livro reduzida a uma gesticulação e a um repertório mínimo e bastante: espelho, pedra, estrela, galo, as "nativas iluminações" de que falava Mallarmé. Não há porém nenhum subtexto, arranjo ou sopro messiânico, nenhum serafismo no regime da poesia de Orides Fontela. Tema algum, nenhuma imagem, nenhuma inflexão de verso algum, coisa alguma vem calçada com os esquemas simbólico-evocativos de uma certa poesia dita essencialmente. "Mais vale um/ pássaro na mão pou/ sado/ que o vôo da/ ave além/ do sangue/ .../ Mais vale o/ pássaro/ mais vale o/ sangue", quase soletra em "Ditado". Orides Fontela age não por afastamento dos seus objetos, mas por máxima e meio inenarrável aproximação. É quase como se fosse menos uma poética e mais uma gramática.
Mas há sobretudo no meio dessa poesia, que vem anunciada por uma fecunda epígrafe de Spinoza ("Todas as grandes coisas são difíceis e raras"), uma figura de mundo e de humanidade bastante inesperada: a do trabalho. Ela aparece várias vezes nos poemas: não como atividade, cálculo, produção, mas como uma espécie de grande realidade, de grande rumor, na qual as coisas se banham, se expandem. É nessa grande realidade, nessa qualidade comum de metamorfose, que se desenvolve a operação secreta de Orides Fontela. Não há desamparo algum no seu mundo.

Texto Anterior: FLAUBERT; LANÇAMENTO 1; LANÇAMENTO 2; MORAVIA; PSICOLOGIA; TECNOLOGIA; POESIA 1; POESIA 2;
Próximo Texto: Comunhões do corpo com o espírito
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.