São Paulo, domingo, 12 de maio de 1996
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O nazismo se tornou risível

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O nazismo é a experiência mais próxima, nos últimos séculos, do que poderíamos chamar mal absoluto. Outras práticas políticas odiosas, como as variantes mais ou menos stalinistas do comunismo, tiveram como atenuante ao menos o discurso, que falava num mundo justo: se o meio era o massacre, o fim se dizia radioso. No nazismo, as palavras já pedem o primado de uma pseudo-raça e a destruição das outras.
É difícil entender isso hoje, quando as divergências políticas perderam em temperatura e quase nenhum discurso que venha a público no Ocidente -nem mesmo o dos piores racistas franceses- se atreve a dizer um ódio irrestrito às demais etnias ou o sonho da pureza étnica. Uma vivência imensa do mal ocorreu, porém, nas décadas de 20 a 40, e as vítimas do nazismo e seus parentes têm razão em recordá-la.
Política da bestialidade
Mas é impossível ler, hoje, as atas do nazismo -as que o tribunal de Nuremberg revelou, em 1945-46- sem forte sensação de ridículo. Os heróis do Reich eram bufões. Dificilmente levaríamos hoje a sério Goering (ou o comparsa italiano Mussolini), com seu machismo, Ribbentrop, com sua histeria, Hitler, com seus gestos ambíguos.
Uma mediocridade é intrínseca ao fascismo. Seu sucesso se deveu a lidar com paixões simplórias, de gente recém-integrada numa sociedade de massas. Daí que os líderes apostassem no medo tornado ódio, o mais fácil dos truques emocionais. Sua tecnologia de conquista apenas modulava as variantes do temor e da ira. Atemorizavam os governantes e os povos por conquistar, açulavam seus compatriotas: uma política, literalmente, da bestialidade.
O melhor epitáfio do nazismo é este: tornou-se risível. Chaplin foi o primeiro a mostrá-lo, na sábia dosagem de lirismo e chacota que compõe seu filme "O Grande Ditador". Há uma tragédia que o nazismo suscitou, mas ele mesmo é uma farsa. Como espetáculo, Leni Riefenstahl que nos perdoe, ele é pobre. Não passa de uma paródia.
Como equilibrar o riso e a dor, eis o que é difícil. Seria obsceno rir da "Lista de Schindler": indicaria uma falta radical de humanidade. Mas é cada vez mais difícil levar a sério aquela procissão de medalhas, cruzes de ferro, suásticas. Felizmente! Talvez a melhor forma de enterrar o horror seja torná-lo ridículo, isto é, excluí-lo do horizonte do concebível.
A capa do papai assassino
Mas, com esse mal absoluto, hoje tornado bufo, milhões compactuaram. Isto, aliás, se discute desde o fim da guerra. Uns pensavam que a culpa residia só na cúpula nazista, outros que toda a nação alemã era culpada. A Guerra de 14-18 foi mais simples. É verdade que o estadista britânico Lloyd George queria enforcar o imperador alemão, mas era difícil dizer que de um lado estaria o bem e do outro, o mal. Já na Segunda Guerra, se os vencedores estavam longe de encarnar o bem, os derrotados eram os parentes mais próximos que se imagine do mal.
Qual foi a parte dos alemães comuns no nazismo? Há várias hipóteses. Pode ter sido um envolvimento burocrático: como a "lex loquens", a lei encarnada que era o Fuehrer, mandava matar judeus e dissidentes, devia se cumprir como qualquer ordem administrativa. Mas essa explicação -de que os algozes seriam burocratas, metidos numa atividade banal qualquer- omite a questão do investimento emocional que eles depunham em seus carimbos e selos.
É plausível supor uma volúpia de obedecer, um orgasmo feliz na privação total de autonomia em nome de um poder superior. Aqui entram as teses da personalidade autoritária, a começar pela "Psicologia de Massa do Fascismo", de Wilhelm Reich. Por trás de cada burocrata da Shoah, haveria um secreto deleite. "Credo quia absurdum", dizia-se na Igreja Católica, "acredito porque é absurdo". Aqui, obedeço porque é absurdo, e assim creio no Fuehrer, que me manda fazer o odioso, aquilo que eu não teria coragem de cometer, não fosse a ordem que me poupa de toda punição. Daí, aliás, a covarde alegação dos carrascos ao serem julgados: "Ordens são ordens", diziam, escondendo-se sob a capa do desaparecido papai assassino.
Isso é o essencial. Discutir se os alemães sabiam ou não do massacre é consequência, porque quem valida a supremacia racial endossa o que ela implica: a destruição dos grupos perseguidos.
O mal analógico e o digital
Mas que lição deixa para nós, ocupados neste fim de século 20 em discutir as relações da ética com a política, a experiência nazista? Foi uma experiência do mal, foi uma tragédia para as vítimas e um ritual bufo para os participantes. Mas, hoje?
Hoje só podemos dizer que o mal nazista era analógico e o mal atual é digital. Já se disse que o nazismo praticou a violência em escala industrial, com suas câmaras de gás. Mas essa industrialização era só de escala: continuava havendo o carrasco diante de suas vítimas. O artesanato do mal apenas conseguia novas ferramentas, mantendo o velho face-a-face que, aliás, é o que horroriza na memória, mas também foi o que levou alguns alemães a apoiar os perseguidos: Oskar Schindler. Mas hoje o mal se pratica de outras formas: sobretudo pela distância e a indiferença.
O que nos dizem os fotos que Sebastião Salgado traz da África, belíssimas em seu horror? Que um continente está sendo chacinado. Mas quem vibra os golpes são meros bufões de segunda, que sequer têm a duvidosa dignidade (dos "kapos" dos campos nazistas) de servir de instrumento a seus senhores. Chacinam no vazio. O mundo do capital desinteressou-se desses povos, inúteis desde que seus votos deixaram de contar na ONU com o fim da Guerra Fria.
O mal ficou abstrato, remoto. Curiosamente, com o fim do comunismo, o marxismo de Brecht ficou pertinente: o mal é engendrado, por exemplo, pelo aumento da taxa de juros, que gera novos sem-terra. Não é mais preciso -nem possível!- reunirem-se os senhores do mal para tramar o "domínio do mundo". Toda a retórica da conspiração virou mau romance de capa-e-espada.
Nuremberg não se repetiu, mas não só porque foi a justiça dos vencedores, que se recusaram a ser julgados. E sim porque ficou impossível apurar responsabilidades. Quem causa o mal, hoje? O mal nazista era ativo; nosso mal só é ativo nos "macho men" apalhaçados da África, da Bósnia, das favelas. Nosso mal maior não tem autores. E por isso está impune e possivelmente veio para ficar. Talvez seja sinônimo do egoísmo, da vitória da coisa privada sobre a "res publica". Talvez o mal banalizado de nossos dias seja o sinal de que, se morreu o mal absoluto do nazismo, também faliu a República, única chance de uma política que tentasse ser ética.

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