São Paulo, sexta-feira, 17 de maio de 1996
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Inverno traz clichês irritantes ao noticiário da TV

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Escrevo sobre algumas coisas irritantes nos noticiários da televisão.
Nesta época de maio, no mais tardar em junho, aparece uma reportagem invariável. Começa assim: "O frio surpreendeu hoje os paulistanos. Chegou a hora de tirar do armário os agasalhos cheirando a naftalina... gorros, cachecóis, qualquer coisa serve para se proteger do inverno, que, este ano, veio mais cedo..."
Várias observações. Em primeiro lugar, não sei por que é sempre uma mulher quem faz esse tipo de reportagem. Como se o assunto fosse simples, impossível de errar, e então entregam para a Fulaninha fazer. Tristezas da condição feminina, até hoje.
Em segundo lugar, pode ser engano meu, mas tenho a impressão de que todo ano as pessoas acham que o inverno "chegou mais cedo" e estão sempre "surpreendidas pelo frio". Por mais que se diga que o tempo anda maluco, que os meteorologistas não se entendem, acho bem o contrário. As estações, mesmo em São Paulo, têm uma regularidade impressionante.
O que pode ter mudado talvez seja a intensidade das variações de temperatura. E sem dúvida São Paulo é hoje uma cidade mais quente do que há 20 ou 30 anos. Mas abril e maio são sempre do mesmo jeito desde que me conheço por gente.
Por último, gostaria de saber se ainda se usa naftalina. Há muitíssimo tempo esse produto me parece ter evaporado completamente. Mas é da essência do clichê que a força de uma palavra, de uma expressão, sobreviva à realidade e a substitua. O clichê existe para poupar ao falante o esforço de entrar em contato com as coisas do mundo; é uma espécie de venda nos olhos.
Há outro clichê muito comum nos noticiários de TV. São aquelas reportagens sobre compras em shopping center.
Novamente pode ser só impressão minha, mas o fato é que, em todas as épocas, sejam de euforia ou de crise econômica, o noticiário vem sempre igual: o consumidor está arredio. "As pessoas andam, andam, pesquisam os preços, perguntam, mas terminam comprando muito pouco", diz a nossa desanimada repórter.
E as mesmas imagens de um corredor de shopping, com pessoas andando a esmo, aparecem na tela.
Bom, é claro que sempre haverá mais pessoas xeretando do que fazendo compras. São poucos os que entram num shopping com um objetivo definido, com um propósito certeiro; e os que fazem isso, entrando numa loja e levando um pacote, são muito mais velozes do que a média dos passantes; daí a imagem de desânimo, ou de baixo consumo, ou de pesquisa de preços, que se encontra no local.
Mas o pior de tudo, o que justificaria uma verdadeira mobilização dos espectadores, é o hábito dos telenoticiários de entrevistar as pessoas comuns.
Greve no metrô: lá vai a nossa pobre repórter entrevistar um motorista de táxi no engarrafamento. Subiu a gasolina: duas donas-de-casa, um pipoqueiro e um office boy darão seu depoimento. Dia das Mães: "O que você acha disso, sr. Fulano?"
Não há quem consiga dizer alguma coisa de interessante; o entrevistado, aliás, está tão surpreendido pelo fato de aparecer na televisão que só diz a primeira coisa que lhe vem à cabeça. Nas situações mais trágicas, em meio às circunstâncias mais irritantes do cotidiano, ele sempre responderá sorrindo. Povinho feliz, esse. Pouco importa: o microfone já se dirige a outra pessoa. Mais uma ou duas e a reportagem estará feita.
Deve haver alguma coisa nos noticiários de TV que explique essa rarefação informativa, essas pasmaceiras cotidianas. Penso que os fatos concretos, as imagens realmente noticiosas, chegam com força demais ao espectador. Ainda hoje, um incêndio ou terremoto são chocantes, mesmo que já tenhamos visto mais de 100 ou 200 deles na TV.
É como se fosse preciso, então, contrabalançar a notícia do telejornal com alguma não-notícia, capaz de dar algum conforto ao espectador. Torna-se importante dizer -e seria um bom fim de noticiário- alguma coisa como: "Apesar de tudo isso que você viu, hoje foi um dia absolutamente normal para a grande maioria da população".
Esse é também o sentido da crônica no jornalismo impresso. Só que uma das vantagens do jornal sobre os outros meios de comunicação é que não se impõe o assunto à atenção do usuário. Sempre se pode virar a página, pular um parágrafo etc.
Na televisão, se você está assistindo ao noticiário, não há jeito. Claro que você pode mudar de canal. Mas lá estará a mesma repórter, no mesmo shopping, constatando aquilo tudo de novo. Um pouco de imaginação cairia bem.

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