São Paulo, domingo, 26 de maio de 1996
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A emancipação do eu

DUDA MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O novo livro de Régis Bonvicino, "Ossos de Borboleta", reafirma a força de sua poesia e acentua seu teor de renovação, empreendido sobretudo a partir de "Outros Poemas" (1993). Esta renovação consiste basicamente no deslocamento de uma indagação ou revelação brutal do eu, levada até um limite paródico, vale dizer crítico, que marcava sua poesia até "Más Companhias" (1987), rumo a uma configuração mais objetivada da linguagem e da apreensão de sua experiência de mundo.
Agora em "Ossos de Borboleta", seu sétimo livro, estamos diante de um poeta que persegue a emancipação do "eu lírico" por meio de um tratamento da linguagem, capaz de conduzir a um "estado quase objetivo das palavras" que se encarrega de falar em lugar do eu, para usarmos uma formulação precisa de Robert Creeley, poeta traduzido por Bonvicino.
Este traço predominante foi captado pela crítica Marjorie Perloff que assinala o diálogo do autor com toda uma tendência da poesia norte-americana contemporânea, um aspecto sublinhado pelas homenagens e dedicatórias a Creeley, Michael Palmer e Douglas Messerli, assim como por algumas versões de seus poemas para o inglês. Em "Outros Poemas", essa exteriorização manifestava-se numa certa fixação da paisagem por meio de um determinado recorte em que a emoção acabava por se inscrever, mas onde já se declarava a poética que seu novo livro acentua e organiza de modo cerrado.
Pois agora, de maneira sistemática, tais recortes se apresentam impregnados por uma conotação dramática que se faz presente na própria apreensão da paisagem. Em primeiro lugar, percebe-se a dimensão mínima do que estamos chamando de paisagem, em geral alguma fresta descuidada em meio ao emparedamento urbano. Além disso, os poemas encenam justamente a dificuldade em se chegar até ela: trata-se quase sempre de uma paisagem captada em estado de suspensão, de interdição ou francamente irrisória. Entre os muitos poemas-exemplares desse teor ("Tampouco", "Noite 1", "A Noite", "Fevereiro", "Sem Título 2"), escolhemos "Manhã": "A manhã nasce/ defendida/ dispersiva/ míope// nasce numa esquina/ só/ entre cortinas/ nasce// em linha reta/ galhos e pétalas/ como uma cor/ às avessas". Uma variante dessa situação é a "paisagem" mutilada, em fratura, como é o caso de "Fevereiro": "os galhos/ das sibipirunas/ cortados// os galhos/ onde o pássaro/ um a um// cortados -fios-/ janela// onde o ar/ agora/ vasos."
Deste modo, nomeá-la significa sempre uma conquista ambígua, pois sua característica está em esquivar-se ao contato ou oferecer um contato precário.
Não menos importante e revelador é o lugar de observação (janela de apartamento), já que nos conduz a um observador sempre submetido a uma tensão, que acaba por nos revelar seu próprio confinamento. Esta situação reiterada em vários poemas ("Gestos", "Onde", "Sempre", "Noite 2", "Num") não poderia, a rigor, ser separada da "paisagem" que se exibe irrisória ou se nega à entrega. No entanto, seria equivocado ver aqui apenas uma espécie de "experiência irredutivelmente subjetiva", pois de fato estamos diante de um aprofundamento particular (o poema) de uma condição geral da realidade urbana.
Assim, por força da tensão entre esses elementos, a emancipação do eu por meio da objetivação passa a se constituir em núcleo dramático de grande parte dos poemas. A dinâmica e a significação desse drama em que se situam poema e poeta parece residir em que a subjetividade e o eu estão sempre à espreita e acabam por se inscrever nessa elocução objetivada. Em "Me Transformo", essa condição vem tematizada na segunda estrofe: "nas desobjetivações e reativações,/ nas linhas e realinhamentos,/ outros/ me atravessam". Há ainda neste poema um outro momento que me parece decisivo para o entendimento da ficção poética de Bonvicino. A quarta estrofe parece nos oferecer o desenlace revelador de uma experiência, uma epifania: "me transformo/ na observação de uma pétala". Ora, na tradição lírica, teríamos aqui o coroamento do poema; mas em "Me Transformo" o poema prossegue até atingir o reverso desse momento de epifania, como se vê no movimento iniciado pelo verso "Me destransformo" que se conclui com: "Retrato desativado/ taxidermista de mim mesmo".
Versos que remetem, creio, a "Sósia da Cópia" e "Más Companhias", ampliando inesperadamente a trama de relações internas sustentadas pelos poemas de "Ossos de Borboleta". O título do livro, expressão que quer dizer "ninharia", alude também a "Ossi di Sepia", de Montale: procurei apontar aqui suas linhas essenciais. É claro que não esgotam o livro em que há lugar até para uma "nova hipótese de espaço" (o poema "Entre"). E para uma série de outros aspectos, que vão desde o impacto algo secreto de "Variações" até a dimensão lúdica em "Quadrado", a homenagem a Murilo Mendes em "A Concisão de uma Ausência" por meio das palavras inventadas que recebem uma nova carga semântica, ou as fantasias engendradas em "Unhas" e "Sem Título 4".

O livro "Ossos de Borboleta" será lançado com "Passagens", traduções de Régis Bonvicino de Michael Palmer, no dia 29, a partir das 19h, na Livraria Livre (r. Armando Penteado, 44, SP).

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