São Paulo, domingo, 26 de maio de 1996
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O brasileiro que desafiou Hitler

Exposições comemoram o centenário do cartunista Belmonte

SAMUEL PFROMM NETTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Juca Pato está careca
Ele apanha como peteca,
Até parece pato choco..."
Estes versos iniciais do maxixe "Coitado do Juca Pato", que São Paulo cantava nos anos 30, se referem à personagem popularíssima que, na primeira metade do século, começou por ser o bonequinho careca de óculos, gravata-borboleta, roupa preta e polainas das caricaturas da recém-nascida "Folha da Noite" (um dos jornais que viriam a formar a Folha). Juca Pato era o povo. Sofrido, empulhado, às voltas com os problemas do custo da vida, da matreirice dos políticos, dos desmandos do poder, esse símbolo do cidadão comum trazia um nome zombeteiro que o identificava como representante da gente simples. Afinal de contas, é sempre o povo que acaba "pagando o pato". Cobre as despesas e sofre as consequências.
Juca Pato saiu da pena e da imaginação de um paulistano chamado Benedito Bastos Barreto, mais conhecido como Belmonte. Em depoimento prestado a Edgard Cavalheiro, três ou quatro anos antes de morrer, Belmonte declarava: "Ao criar Juca Pato, iniciei uma obra de implacável destruição. O Juca não se fizera palmatória do mundo, mas fora recebido como cavaleiro andante dos sofredores e, nos momentos de aflição, era para ele que acorriam todos os que sofriam os reveses da sorte e as injustiças dos homens. Não foi fácil a vida do Juca Pato. Para que ele não naufragasse, revidei ataques, aparei golpes, sustentei polêmicas, desenvolvi campanhas... O ideal de justiça e os anseios de igualdade foram, em verdade, os princípios que moveram meu Juca Pato, mesmo quando combateu falsos profetas que surgiram montados na mula braba da demagogia, com um olho no povo e outro no poder".
Nascido nas charges de 1925, Juca agigantou-se. Seu nome passou a designar cigarros, água sanitária, músicas, um cavalo de corrida, cadernos escolares, graxa de sapatos e até um famoso ponto de encontro de intelectuais e artistas nos anos 40, na avenida São João: o bar Juca Pato. Por último, virou troféu, concedido ao "intelectual do ano" pela União Brasileira de Escritores. Na quadra 44 do cemitério São Paulo, sua escultura identifica o túmulo de Belmonte.
Bastaria a criação desse Juca, que alguém definiu como "o procurador do senso comum, o porta-voz das aflições coletivas, de todos os desenganos sem nome e de todas as esperanças", para garantir a Belmonte um lugar de honra na história de São Paulo e do Brasil. Acontece que Belmonte foi muitíssimo mais do que o pai do Juca Pato. Muito mais do que o caricaturista da Segunda Guerra e das idas e vindas da política nacional desde os anos 20 até meados do século. Caricaturista que, diga-se de passagem, teve a honra de ser mimoseado pelas invectivas de um certo senhor Joseph Goebbels, ministro da propaganda do Terceiro Reich, em emissão internacional da rádio de Berlim, a propósito de caricaturas que ridicularizavam Hitler.
Pesquisador arguto, minucioso e paciente, debruçou-se sobre a história seiscentista da vila de São Paulo do Campo de Piratininga, convertendo os frutos de seus estudos em artigos e desenhos divulgados em periódicos da década de 30 e no livro "No Tempo dos Bandeirantes". Membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e de várias outras sociedades respeitáveis, é lembrado pelos seus amigos como frequentador assíduo dos nossos arquivos e bibliotecas, ledor constante dos inventários e testamentos" da antiga São Paulo, dos Documentos Interessantes, das atas e do registro geral da Câmara. Bebeu nas melhores fontes seus conhecimentos sobre episódios e pessoas, trajes, objetos, costumes, edificações, armas e armaduras do século 17.
Foi cronista. Poeta. Autor e ilustrador de livros para crianças. Fixou os traços definitivos das personagens infantis de Lobato, numa colaboração com este que durou duas dezenas de anos. Fez capas para partituras musicais, cartazes, rótulos, vinhetas de revistas, cartuns para as principais revistas do país. Colaborou em publicações humorísticas editadas nos EUA, na França, na Alemanha, em Portugal, na Argentina. Desenhou as capas e as ilustrações internas de muitas dezenas de livros de ficção e não-ficção, para Paulo Duarte, Mennoti, Nelson Vainer, Viriato Corrêa e muitos outros.
Desenhou histórias em quadrinhos: as aventuras do menino Paulino, nas páginas da edição infantil da "Gazeta", em 1933. Pintor, retratou a São Paulo antiga, particularmente a Piratininga dos tempos dos bandeirantes. A MGM fez-lhe uma oferta tentadora para trabalhar como desenhista em seus estúdios, nos EUA. Belmonte não aceitou. Viveu em São Paulo desde o nascimento, a 15 de maio de 1896, até morrer em 1947.
A carteira de identidade expedida pelo Serviço de Identificação em 1942 dissipa quaisquer dúvidas: Benedito Bastos Barreto, natural de São Paulo, capital, filho de João Canero Bastos Barreto (médico português, que morreu quando o filho tinha dois anos) e de dona Rita Bastos Barreto. Moreno, olhos castanhos, cabelos grisalhos. Pessoas que o conheceram descrevem Belmonte como retraído, "figura magra, comprida, angulosa, cismarenta e calada, que falava muito pouco, mesmo no convívio ameno dos seus afeiçoados", segundo Raimundo de Menezes.
Doentio, emotivo, modesto, paulistano inveterado, nunca deu mostra de ser politicamente correto. "Nunca transigiu, nunca aderiu", assevera Paulo Duarte. "Combateu a fraude eleitoral antes de 30, lutou em 32, foi resistente durante o Estado Novo". Autodidata, nunca aprendeu desenho e não foi além do início do curso de medicina. Nascido em lar modesto, criado por mãe viúva em meio a privações, generoso e desprendido, ao morrer, antes de completar 50 anos, deixou para a mulher e os filhos apenas a sua obra.

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