São Paulo, domingo, 26 de maio de 1996
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A ilegitimidade atual da Justiça

JAVIER MARÍAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quem não cometeu alguma vez um delito? Há atos que sempre o são, em quase qualquer tempo ou lugar, mas há outros muitos que dependem das leis e de costumes mutáveis. Aqui mesmo, durante o franquismo, até respirar o era, e conheço pessoas que passaram uma boa temporada na prisão por terem participado de uma manifestação, distribuído panfletos ou escrito um artigo. Mas até mesmo agora é difícil não se cometer nem um só delito durante uma vida inteira, não digamos o que juridicamente se chama uma falta. Nosso mundo é mais liberal, mas também está mais controlado e regulamentado que nunca, e o Estado e seu afã legislador intervêm cada vez mais em assuntos diante dos quais deveriam se inibir.
Qualquer um poderia acabar na prisão um dia -batamos na madeira-, até mesmo sem ter tido a prévia consciência de que a isto estava se arriscando; qualquer um pode ser acusado e condenado injustamente, como ocorreu uma infinidade de vezes ao longo da história; ou ser vítima de um erro ou de uma conspiração para que pague um pato que não lhe cabia. O filósofo Michel Foucault explicou em seu livro "Vigiar e Punir" como em época relativamente moderna se tinha chegado à idéia de fazer pagar os crimes em termos de duração. Sempre houvera masmorras e calabouços, em que se lançavam o criminoso ou o inimigo para afastá-lo da sociedade ou simplesmente para dele se desfazer; mas esta prática não estava associada a uma idéia de tempo. Com frequência, por meio do mesmo arbítrio ou vontade que levava alguém a ser encarcerado, este alguém podia ser posto em liberdade. Ou então se jogava fora a chave e o preso podia morrer entre grades sem que ninguém se lembrasse ao fim de um tempo por que motivo lá estava.
Assim, esta privação da liberdade durante um período estipulado, de antemão fixado, apesar de já antiga, não foi uma prática de todas as épocas. Em certo sentido, o descobrimento desta forma de castigar foi celebrado em seu momento com alvoroço, como um logro da civilização, que podia deixar de punir os corpos -cortar a mão ao ladrão, apedrejar a adúltera, chicotear o rebelde, ainda que tudo isto continue em vigência em alguns países islâmicos- para vigiar as almas e tentar emendá-las. Para isto as autoridades se davam tempo e o efeito do encarceramento era duplo ou mesmo triplo: salvar a sociedade de uma ameaça; castigar o infrator; tratar de agir sobre seu caráter para reinseri-lo na sociedade.
Hoje em dia, aparentemente, continua sendo esta privação da liberdade a única pena que se impõe aos delinquentes, mas de fato não é assim. Ao enviá-los a nossas prisões, na realidade se lhes está submetendo a penas corporais tão duras e abjetas como as medievais. Quando um indivíduo hoje ingressa em uma prisão, não está sendo mandado para passar um tempo afastado da convivência e a sofrer o único castigo do seu encerramento, mas antes ele está sendo condenado a quase certas violações e violências várias, talvez à utilização de drogas, muito possivelmente a contrair enfermidades -sobretudo uma mortal, a Aids.
Estas condenações implícitas, mas efetivas, reais, com as quais ninguém parece se escandalizar ainda que sejam manifestas, são padecidas ademais da mesma forma por qualquer preso, independentemente da gravidade de seu crime. Desta forma, a lei não distingue de fato, mas somente na teoria: há pouco tempo se condenou na Espanha uma mulher por ter plagiado um poema (!). Deveriam ter-lhe dado um prêmio, por sua qualidade de leitora, mas lhe foi imposta uma pena de um mês de prisão, que imagino que não cumprirá. Mas, se a cumprisse, sua vida poderia mudar inteiramente, a ponto de sair de lá condenada à morte por enfermidade -algo a que não foi condenada.
A situação das prisões -e parece ser um problema mundial- está tornando ilegítima a Justiça e, consequentemente, sua aplicação. Se o Estado me condena a uma pena determinada, tem a obrigação de garantir que eu cumpra esta pena e não outra maior. Se não pode garanti-lo e se por sua decisão me são acrescentados castigos não previstos nem estipulados ou a própria morte, então é o Estado que por sua vez está delinquindo -fica incapacitado para administrar justiça e perde toda legitimidade.
Se sua Justiça não é justa, se não respeita os próprios preceitos nem os aplica estritamente -nem menos nem tampouco mais-, então não tem o direito de condenar ninguém. A coisa é tão grave que não entendo como pode estar acontecendo sem que se lhe dê um fim imediato. Sobretudo porque nisto para todos está em jogo a vida, delinquentes potenciais como somos sem exceção.

Tradução de Ricardo de Azevedo.

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