São Paulo, domingo, 2 de junho de 1996
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A tradição da ironia

CÁSSIO STARLING CARLOS
DA REDAÇÃO

A modernidade no campo estético é associada com frequência às rupturas formais instauradas pelas vanguardas a partir do início do século 20.
Para o professor e ensaísta Arthur Nestrovski, 36, esta definição estreita não consegue compreender as razões dos processos autocríticos constituídos a partir da fundação do modernismo.
Em seu livro de ensaios, alguns deles publicados na Folha, "Ironias da Modernidade", que a Editora Ática está lançando esta semana, ele recorre ao conceito de ironia para esclarecer e situar a gênese da modernidade estética.
Nesta entrevista à Folha, Nestrovski examina o trabalho da ironia na fundação da literatura e da música modernas e discute a situação da crítica brasileira hoje.

Folha - Nestes ensaios o sr. aplica o conceito de modernidade a um período muito mais amplo do que costumamos reconhecer, como uma era marcada pelas rupturas formais. Quais são as fronteiras da modernidade?
Arthur Nestrovski -Nós fomos educados num padrão de leitura que é o da alta modernidade em sentido estrito, que tem um de seus gestos mais repetidos naquela idéia de ruptura ou de crise, que é uma das figurações irônicas do modernismo. A gente crê demais no modernismo como novidade.
Quanto mais eu estudava a literatura do início do século 19, especialmente a partir da obra do poeta Wordsworth, mais me parecia que o que se chama alto modernismo é um momento particular dentro de um projeto que é muito anterior. Um projeto que corresponde mais à virada do século 18 para o século 19 que da passagem do século 19 para o século 20.
Folha - Que lugar ocupa a ironia neste contexto?
Nestrovski - Em fins do século 18, que corresponde ao período da obra de Kant, assiste-se a uma transformação na idéia do que pode ou não pode fazer a literatura, ou a música.
O que vai acontecer no fim do século 18 é, em poucas palavras, a sensação de que a linguagem é insuficiente como instrumento de dominação da experiência. Ela pode fazer certas coisas, e não pode fazer outras.
Isso vai coincidir, na literatura, com o desenvolvimento de uma certa forma de escrever, na qual a linguagem constantemente se põe em xeque. Ela não acredita mais na possibilidade de representar diretamente as coisas ou de reproduzir a experiência de uma forma transparente. Esse distanciamento é o que define a ironia.
Folha - A ironia implica a reflexão da linguagem?
Nestrovski - Sim. No poema "Prelúdio", de Wordsworth, por exemplo, a poesia deixa de ter um assunto fora de si mesma. Ela é sobre o próprio poema se transformando em poema. Este é um dos motivos por que há tantos textos circulares na modernidade.
Folha - E como esse fenômeno ocorre na música?
Nestrovski - É muito diferente observar uma sonata tardia de Beethoven e uma sonata de Mozart ou de Haydn uma geração antes, com 20, 30 anos de diferença. Você vai ver uma enorme quantidade de gestos composicionais que simplesmente não existiam antes, como, por exemplo, momentos na música de Beethoven em que a música simplesmente parece estancar, em que deixa de ser música e passa a ser simplesmente um som suspenso no meio do vazio.
Todos estes são gestos que eu chamo de irônicos, porque são momentos em que a linguagem por assim dizer desacredita da sua identidade expressiva ou narrativa. Ela se faz quebrar, rompe o véu de naturalidade e nos força a observar de fato o que são os meios. Meios muito tangíveis e muito brutos a partir dos quais a gente vai elaborar o significado.
Folha - A maioria dos ensaios reunidos no livro foram publicados originalmente em jornais. Qual sua opinião sobre este trabalho voltado para o grande público?
Nestrovski - Publicar na imprensa torna o trabalho do intelectual, pelo menos potencialmente, muito mais visível e efetivo do que na sala de aula. Especialmente num país como o Brasil, um intelectual que se preocupa de fato com questões de educação tem a obrigação de se valer da imprensa.
Por outro lado, a imprensa preenche uma lacuna deixada pela quase completa ausência de publicações acadêmicas de grande porte. Uma função do jornalismo cultural seria estimular ou dar espaço à discussão de questões intelectuais num nível bastante sofisticado e de polêmica que vai muito além da mera informação.
Folha - Como o sr. avalia a crítica literária feita hoje no país?
Nestrovski - No caso específico da literatura, os programas de pós-graduação nasceram num momento histórico muito particular do país. O auge da crítica literária no Brasil como força de pensamento público coincide precisamente com os movimentos de resistência política.
Coincide também com o surgimento de uma geração de críticos extraordinária, pessoas como Antonio Candido, de uma outra linhagem Haroldo de Campos, posteriormente Roberto Schwarz e Davi Arrigucci. Todos críticos de primeira grandeza, mas que, por isso mesmo, provocam um sentimento de angústia tão forte nas gerações que se seguem, que até hoje parece difícil imaginar formas de crítica literária no Brasil que pensem a literatura a partir de outros propósitos.
Folha - Que outros propósitos poderiam alimentar a crítica hoje?
Nestrovski - É curioso, mas o Brasil, que é de maneira geral muito importador, ao mesmo tempo me parece um país, na área das ciências humanas, altamente conservador. De maneira geral, o pensamento literário brasileiro ainda é regido por questões que são primordialmente as da relação entre literatura e sociedade.
É um pensamento político da literatura sob padrões que são, no mínimo, passíveis de debate quando confrontados com tudo o que aconteceu nos últimos 20 anos na filosofia e na crítica literária em centros em que estas áreas têm uma energia maior.

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