São Paulo, domingo, 2 de junho de 1996
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Em busca das veredas perdidas

FREI BETTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os paradigmas da modernidade sustentam-se na filosofia de Descartes e na física de Newton. Racionalismo e determinismo seriam as chaves para se chegar ao conhecimento científico, livre de interferências subjetivas, preconceitos e superstições.
Levada ao paroxismo, a mecânica clássica -que descreve as leis determinísticas que regem o macrocosmo- sugeriu ao pensamento marxista a idéia, tida como inelutável e científica, de que o determinismo histórico regeria as sociedades para formas mais perfeitas de convivência humana. Assim, o materialismo histórico explicaria o avanço do feudalismo ao capitalismo e, deste, ao socialismo, sem indícios de retrocessos substanciais.
Ora, o Muro de Berlim caiu também sobre essa transposição da mecânica clássica às ciências sociais, soterrando o determinismo histórico e, com ele, os paradigmas que davam uma aparente consistência à modernidade. Para salvar-nos das hipotéticas teorias do caos e do acaso, a formulação de novos paradigmas deve levar em conta dois parâmetros fundamentais, derivados da física quântica (que trata do microcosmo ou das partículas -quanta- existentes no interior do átomo): o princípio da indeterminação ou da incerteza, de Werner Heisenberg, e o princípio da complementaridade, de Niels Bohr.
Um salto quântico
A carteira de identidade química do átomo encontra-se no número de prótons contidos em seu núcleo. São eles que determinam a carga elétrica do núcleo que, por sua vez, fornece o número de elétrons em órbita em torno do núcleo. Um átomo simples de hidrogênio possui um único próton -que é também o seu núcleo- cercado por um elétron. Os átomos mais pesados possuem mais prótons e nêutrons -e também mais elétrons que coroam o núcleo.
Medir a localização e a trajetória de bilhões de partículas e, com os resultados, prever o movimento dos prótons, é física clássica. Heisenberg pretendeu demonstrar que jamais poderemos conhecer tudo sobre os movimentos de uma partícula. Mesmo conscientes de que em ciência todo resultado é provisório, não se pode deixar de admitir que o princípio da indeterminação revolucionou a visão que a física newtoniana tinha do mundo. Agora, a física quântica desafia a nossa lógica.
Não é fácil acolher sem interrogações a teoria quântica. O próprio Einstein, um dos pioneiros desta teoria, formulador da hipótese do fóton como quantum de luz, chegou a afirmar que estava intimamente persuadido de que os físicos não poderiam se contentar por muito tempo com essa "descrição insuficiente da realidade". Discordou da interpretação probabilística da mecânica quântica. Só que, em geral, a insuficiência não está na natureza e sim em nossas cabeças, o que não significa que possamos alimentar a pretensão de penetrar todos os segredos da natureza. Moça pudica, ela preservará para sempre certos mistérios, como argumenta a Escola de Copenhague, ao demonstrar que certos acessos não estão permitidos pela própria natureza.
Realidades excludentes
A ruptura decisiva da física quântica com a física clássica ocorreu em 1927, quando o alemão Werner Heisenberg estabeleceu o princípio da indeterminação -pode-se conhecer a posição exata de uma partícula, um elétron, por exemplo, ou a sua velocidade, mas não as duas coisas ao mesmo tempo. Impossível saber, simultaneamente, onde um elétron se encontra e para onde ele se dirige.
Pode-se saber onde ele se encontra, mas jamais captar, ao mesmo tempo, a sua velocidade. Pode-se medir sua trajetória, nunca sua localização exata. Numa câmara úmida podemos observar a direção na qual um próton se move, até que ele passe pelo vapor d'água, quando sua desaceleração impedirá que saibamos onde se encontra. A outra alternativa é irradiar o próton, tomando uma foto dele, mas a luz ou qualquer outra radiação usada em fotografia o desviará de sua trajetória, de modo que jamais saberemos qual seria seu percurso se não tivesse sido incomodado pelo cientista-paparazzo.
Ao contrário do que supunha Einstein, Deus parece jogar dados com o Universo. As imutáveis e previsíveis leis da natureza em sua dimensão macroscópica não se aplicam à dimensão microscópica -eis a descoberta fundamental da física quântica. Na esfera do infinitamente pequeno, segundo o princípio quântico da indeterminação, o valor de todas as quantidades mensuráveis -velocidade e posição, momento e energia, por exemplo- está sujeito a resultados que permanecem no limite da incerteza. Isso significa que jamais teremos pleno conhecimento do mundo subatômico, em que os eventos não são, como pensava Newton, determinados necessariamente pelas causas que os precedem. Todas as respostas que, naquela dimensão, a natureza nos fornece estarão inelutavelmente comprometidas por nossas perguntas.
Essa limitação do conhecimento não estaria atualmente condicionada pelos recursos tecnológicos de que dispomos? Não se poderia criar, no futuro, um aparelho capaz de acompanhar o movimento do próton sem interferir na sua trajetória? A incerteza quântica não depende da qualidade técnica dos equipamentos utilizados na observação do mundo subatômico. Esta é uma limitação absoluta.
Realidades complementares
No mundo quântico, a natureza é, portanto, dual e dialógica. Dual, e não dualista, no sentido platônico, mas sim, como ressaltava Niels Bohr, numa interação de complementaridade. Foi também em 1927 que o físico dinamarquês Niels Bohr formulou o princípio da complementaridade.
No interior do átomo, a matéria apresenta-se com aparente dualidade, ora comportando-se como partículas, que possuem trajetórias bem definidas, ora comportando-se como onda, interagindo sobre si mesma.
Se um elétron se apresenta ora como onda, ora como partícula, energia e matéria, Yin e Yang, isso significa que cessa o reino da objetividade: há uma inter-relação entre observador e observado. Desmorona-se, assim, o dogma da imaculada neutralidade científica. A natureza responde às questões que levantamos. A consciência do observador influi na definição e, até mesmo, na existência do objeto observado. Entre os dois reina um único e mesmo sistema. Olho o olho que me olha.
Em 1926, numa conversa com Heisenberg, Einstein dizia-lhe: "Observar significa que construímos alguma conexão entre um fenômeno e a nossa concepção do fenômeno". Assim, a física quântica afirma que não é possível separar cartesianamente, de um lado, a natureza e, de outro, a informação que se tem sobre ela. Em última instância, predomina a interação entre o observado e o observador.
É dessa interação sujeito-objeto que trata o princípio da indeterminação. E, sobre ele, ergue-se a visão holística do Universo: há uma íntima e indestrutível conexão entre tudo o que existe -das estrelas ao sorvete saboreado por uma criança, dos neurônios de nosso cérebro aos neutrinos no interior do Sol.
Uma visão holística
Para o princípio da indeterminação -que supõe o da complementaridade- há uma intrínseca conexão entre consciência e realidade. Não é possível entender a teoria quântica sem abdicar do conceito tradicional de matéria como algo sólido e palpável. Nos umbrais desse novo paradigma -que um dia também será velho-, devemos deixar para trás idéias que, no decorrer de gerações, foram tidas como universais e imutáveis.
Segundo os pais da teoria quântica, Heisenberg e Bohr, na esfera subatômica, conceitos sensatos como distância e tempo, e a divisão entre consciência e realidade, deixam de existir. De modo que os cientistas são obrigados a abrir mão da simetria que tanto os seduz para se dobrarem à imposição da natureza, pois quem governa o átomo não é a mecânica newtoniana, mas a mecânica quântica.
Na esfera do infinitamente pequeno, a ciência é obrigada a ingressar no imprevisível e obscuro reino das probabilidades. O princípio da indeterminação revoluciona nossa percepção da natureza e da história. E nos faz tomar consciência de que, na natureza, a incerteza quântica não se faz presente apenas nas partículas subatômicas. Bilhões de anos após a predominância quântica no alvorecer do Universo, um estranho e inteligente fenômeno despontaria dotado de imprevisibilidade inerente a seu livre-arbítrio: os seres humanos.
Resgate quântico
O princípio da indeterminação aplica-se também à história. A liberdade humana é um reduto quântico. Muitas vezes observamos pessoas que poderíamos qualificar de "partículas", como os políticos, e outras que mais parecem "ondas", como os artistas. Em cada um de nós essa dimensão dual também se manifesta, sobrepondo-se, como análise e intuição, razão e coração, inteligência e fé. Uma expressão humana tipicamente quântica é o jazz, em que cada músico improvisa dentro das leis da harmonia, interpretando com o seu instrumento a sua própria melodia. Não se pode prever exatamente a intensidade e o ritmo de cada improviso e, no entanto, o resultado é sempre harmônico.
Não há leis ou cálculos que prevejam o que fará um ser humano, ainda que seja um escravo. Lá no núcleo central de nossa liberdade -a consciência- ninguém pode penetrar. Nem mesmo à aceitação da verdade o ser humano pode ser obrigado. São Tomás de Aquino, que nada entendia de física quântica, mas muito sabia da condição humana, chega a afirmar que é "ilícito até mesmo o ato de fé em Cristo feito por quem, por absurdo, estivesse convencido de agir mal ao fazê-lo".
O resgate da liberdade humana pela ótica quântica e, por conseguinte, o abandono dos velhos esquemas deterministas, reinstaura o ser humano como sujeito histórico, superando toda tentativa de atomização e realçando a sua inter-relação com a natureza e com os seus semelhantes.
Essa visão holística descarta também as tentativas de encarcerar o indivíduo num mundo sem história, sem ideais e sem utopias, restrito aos meios de sobrevivência e submisso às implacáveis leis do mercado.
Toda síntese incomoda a quem se situa num dos extremos. A reintrodução da subjetividade na esfera da ciência mexe com bloqueios emocionais arvorados em profundas raízes históricas. Em nome da fé -uma experiência subjetiva- inúmeros cientistas, taxados de hereges ou bruxos, foram condenados à fogueira da Inquisição. Em pleno Renascimento, Giordano Bruno morreu queimado, e Galileu viu-se obrigado a se retratar. Com o Iluminismo, no século 18, os cientistas assumiram a hegemonia do saber e o controle das universidades, identificando criatividade e liberdade com objetividade, e relegando à subjetividade tudo que parecesse irracionalidade e intolerância.
Na prática, ainda estamos longe do resgate da unidade. No Ocidente, as universidades continuam fechadas a métodos de conhecimento e vivência simbólica como a intuição, a premonição, a astrologia, o tarô, o I Ching e, no caso da América Latina, às religiões e aos ritos e mitos de origem indígena e africana.
Tais "superstições" são ignoradas pelos currículos acadêmicos, embora haja professores e alunos que frequentem terreiros e mães-de-santo, e consultem as cartas do zodíaco e os búzios. Por sua vez, nas escolas de formação religiosa ou teológica ainda não há espaço para a atualização científica, nem se olha o céu pelas lentes de astronomia ou a intimidade da matéria pelas equações quânticas. A pluridisciplinariedade, rumo à epistemologia holística, permanece como desafio e meta. Porém há razões para otimismo, quando se constata a abertura cada vez maior da cartesiana medicina ocidental à acupuntura e o interesse de renomados cientistas pela sabedoria contida nas culturas da Índia e da China.
Na política fala-se cada vez mais em ética e, nas religiões, recupera-se a dimensão mística. A ecologia re-humaniza a relação entre os seres humanos e a natureza e as comunicações reduzem o mundo a uma aldeia global. Resta enfrentar o grande desafio de fazer com que o capital -na forma de dinheiro, de tecnologia e de saber- esteja a serviço da felicidade humana, rompendo as barreiras das discriminações raciais, sociais, étnicas e religiosas. Então, reencontraremos as veredas que conduzem ao jardim do Éden.

Carlos Alberto Libânio Christo (Frei Betto) é frade dominicano e escritor, autor de, entre outros, "A Obra do Artista - Uma Visão Holística do Universo", do qual o texto acima é um resumo feito pelo autor.

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