São Paulo, domingo, 2 de junho de 1996
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Cristãos-novos começaram medicina no Brasil

MOACIR SCLIAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

A anedota é antiga, mas sugestiva. Mãe judia sai a passear com os dois filhos pequenos. Senhora da vizinhança pergunta pela idade das crianças. Resposta: "O cardiologista tem cinco e o endocrinologista vai fazer três."
Mesmo a olho nu, sem recorrer a estatísticas, é fácil ver que uma alta proporção de médicos é formada de judeus. O grande patologista Rudolf Virchow falava em "talento hereditário".
Mais fácil é atentar a uma tradição histórica que remonta ao período bíblico.
No Antigo Testamento, são numerosas as referências a doenças -vistas como um castigo divino aos pecados da humanidade.
O controle das enfermidades, particularmente as transmissíveis (e, particularmente, a lepra, um terror da antiguidade), está a cargo dos sacerdotes.
Às pessoas, cabe adotar uma vida sã e seguir os minuciosos rituais de higiene: o Antigo Testamento é o território da medicina preventiva (curas e, sobretudo, curas milagrosas, serão adiadas para o Novo Testamento), como é o Talmud, o texto litúrgico da diáspora.
Mas fica uma idéia: curar enfermidades dá ao homem um poder quase divino. Que se traduz, naturalmente, em prestígio e riqueza.
Na Idade Média, enquanto a ciência entrava em declínio no ocidente, judeus e árabes foram -a observação é, de novo, de Virchow -os responsáveis pelo desenvolvimento da medicina.
Nessa época, doutor era quem se assumia como tal -caso de Maimônides. Nascido em Córdoba, na Espanha árabe, ele se localizou no Egito, onde tornou-se médico de celebridades, incluindo o sultão Saladino.
Com o Renascimento, há um despertar da medicina. Médicos judeus novamente se destacaram, mas tiveram de enfrentar, sobretudo na península Ibérica, as perseguições da Inquisição.
Foi o caso de Amatus Lusitanus (um pseudônimo: Amatus é a forma latina do hebraico Habib, a cuja família o médico pertencia, ainda que seu nome fosse João Rodrigues). Nascido em Portugal, foi obrigado a fugir: para Ancona, depois Ragusa, depois Salômica...
Este destino errante também explica outro motivo da atração judaica pela medicina: é uma profissão "portátil", que depende, sobretudo, de conhecimento e técnica e que pode, portanto, ser levada para qualquer lugar. E um desses lugares foi o Brasil.
Judeus portugueses
Para cá vieram, logo após o descobrimento, numerosos cristãos-novos (judeus convertidos à força) que exerceram a profissão médica. É esta fascinante história que Bella Herson conta em "Cristãos-novos e Seus Descendentes na Medicina Brasileira (1500-1850)", editado pela Edusp.
A obra é fruto de uma exaustiva pesquisa que levou a autora, nascida na Polônia, a percorrer vários países e arquivos em busca de material para seu estudo que não é, claro, uma descoberta original.
Por exemplo, em "Os Judaizantes nas Capitanias de Cima (1969)" diz Elias Lipiner: "Entre os ofícios da preferência dos judeus portugueses, nos primeiros séculos da monarquia, figuram os de físico e cirurgião." Entre parênteses, a denominação é esta mesmo, físico.
Ele era o médico licenciado por Coimbra ou Salamanca. Tinha um status maior que o dos cirurgiões, cujo ofício era, no começo, conjugado à profissão de barbeiro (até hoje, na Inglaterra, clínico é "Doctor", mas cirurgião é só "Mister").
No lapidar "História Geral da Medicina Brasileira", de Lycurgo Santos Filho, são numerosas as alusões aos cristãos-novos, um rótulo que engloba "quase todos... os que vêm exercer a profissão médico-farmacêutica". A eles é dedicada uma seção da obra, com uma apreciável relação de nomes.
Era provavelmente cristão-novo o primeiro profissional habilitado a exercer a medicina no país, Jorge de Valadares; veio para Salvador, junto com o governador Tomé de Souza, recebendo o ordenado mensal de 2.000 réis (falem mal do SUS). Este "provavelmente", colocado por Elias Lipiner, se justifica.
Os processos contra cristãos-novos, vários dos quais são analisados por Bella Herson, muitas vezes se baseavam em acusações no mínimo duvidosas, eventualmente motivadas por ódio pessoal ou por interesse; confiscar bens (e muitos dos médicos acusados tinham também atividade comercial ou na mineração) era uma prática comum da Inquisição.
Os problemas de saúde do Brasil colonial se traduziam principalmente nas pestilências, que só viriam a ser eficazmente enfrentadas com Oswaldo Cruz, com suas campanhas de vacinação e erradicação de mosquitos, no início do século 20.
Contudo, a história dos médicos judeus no Brasil é bastante longa, entre outras razões, diz Bella Herson, porque esta não era uma posição especialmente cobiçada: mal paga, trabalhosa, medicina era "negócio de judeu".
Tudo isto acabava criando em torno do exercício da medicina uma aura de suspeição: eram frequentes, afirma Elias Lipiner, as acusações de que os doutores cristãos-novos se vingavam das perseguições provocando a morte de pacientes -um libelo que, curiosamente, seria retomado por Stalin no famoso processo contra médicos judeus que teriam tentado liquidá-lo.
Mesmo nessas circunstâncias desfavoráveis, diz Bella Herson, os médicos cristãos-novos brasileiros conseguiram introduzir no país plantas medicinais e até publicavam tratados; às vezes, para enganar a Inquisição, sob pseudônimo, como foi o caso de Simão Pinheiro Morão, que se assinava "Reinhipo", anagrama de Pinheiro.
A investigação de Bella Herson inclui os médicos cristãos-novos no Brasil holandês, nas universidades de Coimbra (Portugal) e de Montpellier (França, tolerante refúgio para os perseguidos da Inquisição) e nos cárceres da Inquisição em Lisboa.
Os últimos processos só foram ocorrer no final do século 18. Com os novos ventos liberalizadores que sopravam na Europa a partir do começo do século 19, o Santo Ofício cessou as suas atividades.
Os cristãos-novos desapareceram do cenário brasileiro, aparentemente num processo de assimilação acelerada.
É uma história triste, esta, a história de um tempo sombrio. Mostra de que maneira a intolerância foi capaz de retardar o desenvolvimento da ciência no Brasil dos tempos da dominação portuguesa.
E que, de certa forma, antecipou a cassação de professores e o "massacre de Manguinhos" com que o regime militar ditadura procurou se livrar de cientistas hostis. Exorcizar os espectros do passado é uma tarefa de nossa geração e para isto a obra de Bella Herson dá uma boa contribuição.

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