São Paulo, domingo, 2 de junho de 1996
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Qual é a maior contribuição de Deleuze ao pensamento da obra do milênio?

Michael Hardt
Professor da Duke University (EUA): "A contribuição de Deleuze pode ser resumida como sendo a de uma filosofia da imanência. A imanência se opõe a formulações transcendentais, ambas no sentido de formulações religiosas e filosóficas que apresentam valores e ideais em um âmbito separado deste mundo, ou no sentido de uma ordem política que coloca sua força acima do plano interativo das forças sociais.
Em uma bela passagem de um de seus livros de cinema, ele escreveu que o cinema tem o poder de nos fazer crer neste mundo (uma tarefa muito importante, ele declara). A filosofia de Deleuze certamente nos fornece maneiras de acreditar neste mundo -e nos põe em condições de mudá-lo".

David Lapoujade
Professor da Universidade de Paris 10: "Você sabe, creio que o pensamento de Deleuze não tem missão profética. Ele não está ligado a nenhum destino próprio à 'dobra do milênio'. Tem-se o costume de invocar a famosa frase de Foucault: 'Um dia, talvez, o século será deleuziano' e sublinhar seu aspecto profético, enigmático ou cômico. Mas justamente, quando Deleuze comenta esta fórmula é para dizer que não se sentia tocado pelas grandes questões relativas à superação da metafísica ou à morte da filosofia, por estas atividades milenares das quais nosso século deveria pensar o desaparecimento.
Ao contrário, quando Deleuze afirma que ele pratica uma espécie de 'art brut' dos conceitos, ele libera a filosofia do trabalho interior do luto do qual ela se sobrecarrega. De um certo modo, uma de suas maiores contribuições é que ele permite praticar de novo a filosofia, sem que pese sobre ela o peso de sua própria história. Ainda que, para esta questão, eu creio que a frase importante de Foucault é muito mais esta: com Deleuze, de novo, o pensamento, a filosofia são possíveis. Isto significa que se trata de uma das filosofias mais liberadoras, tanto para a vida como para o pensamento".

Frederic Jameson
Professor da Duke University (EUA): "Deleuze foi uma inteligência filosófica prodigiosa, que transformou profundamente os filósofos clássicos que leu: Hume, Nietzsche, Kant, Bergson, entre outros.
Ao lado de muitos outros filósofos contemporâneos -poderosa e engenhosamente- o seu trabalho baseou-se em um ataque à diferenciação sujeito/objeto e tentou nos mostrar como a gama de nossas respostas 'subjetivas' era também sintoma e testemunho da objetividade".

François Zourabichvili
Ensaísta francês, autor de "Deleuze - Une Philosophie de l'Événement" (Uma Filosofia do Acontecimento): "Não há pensamento universal ao qual cada filósofo contribuiria, na medida de seu talento. Não há nem mesmo mundo filosófico, tantas são hoje diversas ou estilhaçadas as correntes. Nietzsche e James mostraram a necessidade desta divergência: ela se deve à pluralidade dos estilos de vida (aquilo pelo que o pensamento permanece em relação com a verdade, ainda que a relação tenha mudado).
As divergências não são forçosamente mais marcadas que em outros épocas, mas o século 20 se caracteriza pelo enrijecimento de certas orientações filosóficas num gesto de hegemonia e de exclusão: assim o marxismo, a fenomenologia, o heideggerianismo, a desconstrução, a filosofia analítica. Cada um invoca seu próprio corte para melhor estigmatizar a ingenuidade arcaica dos outros. É notável que o pensamento de Deleuze não tenha nunca adotado esta postura, e deixa por consequência muito mais livres os seus leitores".

John Rajchman
Professor da Duke University (EUA): "O pensamento de Deleuze é múltiplo, leva a várias direções e é útil de muitas maneiras. Que ele seja assim, faz parte da 'imagem do pensamento' de Deleuze. Ele elaborou uma idéia do pensamento como uma construção incompleta, ligada a novas circunstâncias com um tipo peculiar de consistência, um "plano de imanência". Talvez esta mesma imagem seja o mais importante para nós na virada do século.
Penso que estamos hoje em uma nova situação "geofilosófica", situação à qual a imagem de Deleuze da filosofia como viagem e geografia é particularmente aplicável. Uma exigência que ressurge para o tipo de viajante que adota o mote de Proust que Deleuze admirava: o verdadeiro sonhador é o que sai para verificar algo".

Eric Alliez
Diretor do Colégio Internacional de Estudos Filosóficos Transdiciplinares e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro: "A afirmação da possibilidade e da necessidade puras da filosofia enquanto tal. Deleuze firma com efeito este momento em que a filosofia tenta excluir de uma vez por todas todos os princípios transcendentes que ela pôde encontrar na sua história para se adaptar às Formas de Deus, do Mundo e do Eu (centro, esfera e círculo: 'tripla condição para não poder pensar o acontecimento', segundo as palavras de Foucault): quando a filosofia afirma a imanência como a única condição que lhe permite criar seus conceitos como 'as coisas mesmas, mas coisas em estado livre e selvagem', para além dos predicados antropológicos e das categorias clássicas da representação que durante muito tempo dominaram a idéia mesma de modernidade...
Daí a radicalidade especulativa da ontologia deleuziana determina a possibilidade de um materialismo filosófico enfim revolucionário, em que o conceito não vale senão enquanto permite, que nos permite, liberar a imanência de todos os limites que o capital lhe impunha ainda (ou que ela se impunha a si mesma, sob a forma do capital aparecendo como algo de transcendente)... É portanto toda a filosofia de Deleuze que se inscreve sob esta rubrica 'Capitalismo e Esquizofrenia', pela qual passa a dobra do milênio. Mede-se assim até que ponto é lamentável que Deleuze não tenha podido escrever a obra que ele mesmo concebia como seu último livro e que ele queria intitular 'Grandeza de Marx'... Mas para nos consolarmos, não estamos impedidos de pensar que este Marx virtual, este Marx filosoficamente glabro ao qual Deleuze fazia alusão nas primeiras páginas de 'Diferença e Repetição', talvez investido à maneira de uma casa vazia que nos permita deslocar como um novo começo no corpus deleuziano...".

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