São Paulo, domingo, 2 de junho de 1996
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Apenas menos

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Um amigo de Proust passou seis anos sem ir a Paris. Viajou, casou, ganhou dinheiro, viveu. Encontrou-se com o escritor na rua, por acaso. Os dois haviam sido íntimos. O amigo quis saber se era o mesmo ou se havia mudado fisicamente durante os anos de ausência.
Proust respondeu, enigmaticamente: "Tudo bem com você, apenas menos". O amigo se surpreendeu: "Menos o quê? Menos bonito? Menos rico? Menos saudável? Menos inteligente?" Proust explicou: "Nada disso. Você está o mesmo. Apenas menos".
O episódio é de uma época sofisticada, vivido por pessoas esnobes, num clima de requintada frescura. Mas não deixa de ser uma lição. Com o tempo, não pioramos necessariamente. Continuamos na mesma, belos ou feios, bons ou maus, inteligentes ou burros. Só que "menos".
A sutileza passa despercebida de nós próprios. É preciso um encontro, um acaso, até mesmo o testemunho explícito de um observador que possa captar o que em nós está "menos". Menos brilho no olhar, menos vitalidade no gesto, menos decisão na voz, menos rapidez no pensamento, menos alegria no sorriso. O tempo é carrasco gradual, não tem nem precisa ter pressa. Ninguém fica burro da noite para o dia, nem perde o encanto no espaço de uma manhã -como as sovadas rosas de Malherbe.
O ritmo com que ficamos cada dia "menos" dará a medida de nossa decadência. Da qual todos teremos o tributo da carne para pagar. Outra noite, para distrair a insônia, pulando de canal em canal na TV, parei num comercial feito pela Xuxa. Lembro dela posando para capas de revistas, algumas delas dirigidas por mim, 15 anos atrás. Descobri que ela estava alguma coisa "menos".
Evidente que também tenho meu quinhão. Nem preciso de espelho e do testemunho alheio para sentir no olhar fatigado, no cansaço de tudo, que eu também estou menos -cada vez menos.

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