São Paulo, terça-feira, 4 de junho de 1996
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'Chapas-negras' e fisiológicos querem me processar

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Ao entrar no grande hall de mármore do STJ, tive uma vertigem de reverência, vendo as capas negras dos juízes, que adejavam como condores pelos corredores brancos.
Um clima de "kafka clean" me assombrara os passos, até eu chegar à presença deste juiz que agora me interrogava, no processo que congressista e seus sócios jornalistas-patrulheiros, "os chapas-negras", moviam contra mim.
Mas toda a grandeza do tribunal, a altura da mesa do juiz, as colunas, os reposteiros contribuíam para amolecer minhas convicções. Comecei a ter um delirante desejo de me culpar.
O juiz me olhou de seu palanque altíssimo:
- Você não percebe que está unindo forças antagônicas contra você? (Não sei por que o juiz, magro e severo, me lembrava o "chapa-negra" Janio de Freitas. (O "chapa-negra" é o sujeito que finge que é progressista, mas é movido só por inveja e rancor.)
- Você não percebe -me dizia ele ferozmente- que você está atrapalhando a burrice brasileira, feita de uma clara divisão de bem e de mal? Quem é você? O presidente do PT diz que você é o 'porta-voz oficioso do governo'. Além disso, os ruralistas, os evangélicos te atacam...
À medida que o homem falava, eu sentia um desesperado desejo de perdoar.
- Sim, meritíssimo, talvez o José Dirceu tenha razão e eu seja um reacionário.
Minha alma começou a entender o José Dirceu. Vi aqueles anos todos de uma ideologia cheia de confusão e delírio, tudo tão precário, vagas noções de justiça, todo um narcisismo disfarçado de amor ao povo, a mente cheia de rebotalhos de um leninismo mal assimilado.
E eu perdoei o Zé Dirceu. Logo quando ele chega a líder do PT, o sindicalismo declina e ele acaba defensor de funcionários públicos. Ele que sonhava com as massas... Pobre Dirceu. Que dor lhe causa toda esta infernal complexidade do mundo de hoje, ele que tem um "muro de Berlim" na alma, que lhe faz viver no escuro do seu fraco entendimento. E eu disse ao juiz:
- Sim, meritíssimo... O Dirceu tem razão. Eu não passo de um fantoche neoliberal!
- Como então o senhor é chamado de "esquerdista" pelos ruralistas?
- Talvez seja um resto de totalitarismo que carrego comigo, senhor, que me impede de entender a beleza do latifúndio colonial secular, de ver como é doce a fidelidade a esta "casa grande" no coração, quanto amor familiar se esconde atrás de um fazendeiro que comanda massacres. Eu era um comunista frio que não entendia a beleza da cordialidade brasileira.
O juiz me olhou com desconfiança.
- Mas, se o senhor era comunista, como é odiado pelos albanezes do PC do B?
- Só agora, diante do senhor, eu vejo quão cego eu fui para a poesia "kamikaze" dos fundamentalistas da esquerda. Em nome de um racionalismo raso e administrativista, pensando em melhorar a qualidade de vida possível do povo, eu esqueci quanta poesia existe em um delírio maoísta, na doce burrice de um sectário, quanta tradição mora nos velhos slogans de um avozinho vermelho como João Amazonas... Sim, meritíssimo. Tenho de fazer autocrítica, diante do cérebro pequeno, mas puro, de revolucionários como Aroldo de Lima. Sim, eu declaro que sou um verme burguês dos arrozais.
- Mas, se você é um burguês sórdido, como explicar então que verdadeiros burgueses, gordos senhores como Newton Cardoso, ícone do reacionarismo crasso de Minas, te dedique tanto ódio? -perguntou o magistrado.
Possuído de culpa, entendi o drama de Newton Cardoso. Aquele homem que tudo levou do poder, era solitário. Newton tinha a síndrome de ser a imensa caricatura de si mesmo, um monumento vivo da boçalidade. E também, condoído, entendi a grande dor de Newton, carregando aquela alma feita de toucinho pelos campos gerais, e vi que eu não era um burguês perfeito. Me faltava a "physique du role". Afinal, pensei num calafrio, não sei quem sou...
- O senhor está querendo provar que é um cristão que tudo perdoa? O senhor é o quê? Um evangélico?
- Não -respondi cabisbaixo. -O Edir Macedo me acha um Exu... (Aumentava minha crise de identidade. Quem era eu afinal?)
- O senhor quer fechar o Congresso? É fujimorista?
- Não. Sou democrata.
- É jornalista de oposição ou bajulador?
- Nem jornalista sou, meritíssimo. O comissário do povo Janio de Freitas me cassou a carteira. Segundo ele, eu sou da "direita envergonhada" com "alma fascistóide".
- Mas você não é "fernandista apaixonado"? Você não está abalado pelo desgaste do seu "guru", como bem apontou o Janio de Freitas?
(Estranhei que o juiz soubesse tanto de Janio. Seu rosto duro me lembrava também o perfil bilioso de Carlos Heitor Cony, numa fusão de imagens).
- Não sou bajulador de ninguém.. Se de alguém fosse, eu não seria bajulador de Nilo Batista, guru do "chapa-negra" Janio de Freitas, profundo conhecedor das listas de bicheiros e defensor do Centrão de Fisiológicos do Congresso, que ele chama carinhosamente de "Grupo Consciência".
Eu também não seria como o Carlos Heitor Cony, bajulador do falecido Adolfo Bloch, nem baba-ovo do seu sucessor, Jaquito, se bem que eu compreendo, meritíssimo, que um homem tem que ganhar seu pão.
Uma vez, Bloch gritou na redação: "Onde está o canalha do Cony?" Cony aflautou a voz do fundo da sala: "Chamou, Adolfo?" (Mas minha vontade de perdoar era invencível.) No entanto, meritíssimo, eu entendo o Cony. Os sapos que um homem tem de engolir. Literatura menor vende pouco.
Compreendo até que ele ache que eu quero grana para fazer filmes nazistas como Leni Rifenstahi, como ele afirmou ontem na Folha. Entendo o encanto desse homem com Hitler, ele que comparou o PT ao Partido Nazista, lembra, meritíssimo?
Mas, afinal, que crime cometi? Sou culpado porque critiquei o balcão de negócios que alguns congressistas estão montando, com o apoio de Janio e Cony?
- Não! -falou o terrível juiz do alto. - Seu crime é esse desejo de perdoar, como se fosse superior a todos. A misericórdia também corrompe. Você é culpado por não atacar teus inimigos. Isto é soberba. Culpado!
O martelo bateu. Num clarão, eu descobri quem eu era.
E prometi a mim mesmo guerrear contra a burrice e a má-fé que me cercam, como um cruzado sem perdão. E apalpei minha faca no bolso da calça.

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