São Paulo, domingo, 9 de junho de 1996
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O novo espaço público

TARSO GENRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

1. Os governos locais adquirem, com o processo de globalização econômica já realizado, uma nova dimensão política para a reconstituição do projeto socialista, cujos enunciados tradicionais não conseguem responder às questões emergentes das novas formas de produção, no interior de um mesmo modo de produção, no curso da mais radical revolução tecnológica da era moderna.
2. O esfacelamento da classe operária tradicional pela implementação massiva das novas tecnologias -a informática, a robótica, a telemática; os novos métodos gerenciais; a redução crescente da implementação do valor agregado pelo trabalho vivo; a horizontalização do processo produtivo pela terceirização e por novas formas de cooperação entre empresas; o surgimento de novos focos de conflitividade e a separação cada vez maior entre a sociedade formal e a sociedade informal; as migrações e a superconcentração da renda socialmente gerada; a redução das fronteiras jurídicas e burocráticas entre os países, processada pela agudização da internacionalização da economia -todos estes aspectos de uma nova realidade mundial configuram um novo período histórico, estimulam o surgimento de novos sujeitos sociais e acrescentam novas formas de dominação cultural e política, que demandam uma resposta mais abrangente e mais complexa por parte da esquerda socialista.
3. A regeneração da idéia socialista junto aos trabalhadores militantes e às camadas ilustradas, capazes de aderir aos ideais humanistas que ela encerra, exige novos métodos para a abordagem da luta de classes, novas experiências de gestão pública, capazes de seduzir o imaginário popular; esta regeneração tramitará por período histórico ainda indefinido, para que a esquerda se firme de novo como depositária dos ideais de igualdade, humanismo e liberdade.
4. O primeiro grande passo deste projeto será a luta pela hegemonia: a constituição de uma nova cultura política, que, por não estar mais centrada na exclusividade estratégica da classe operária tradicional, pode e deve ser mais abrangente, mais tolerante, mais "aberta", para incorporar a constelação dos novos sujeitos sociais e as suas novas demandas -desde as oriundas das novas camadas técnicas que operam os novos processos produtivos até as colocadas pelas organizações ecológicas e de gênero-, abrindo, assim, o debate sobre uma nova plataforma programática, mais contemporânea, capaz de propor um novo modo de vida e uma nova organização da produção e da sociedade.
5. A crise de eficácia e representatividade do Estado moderno vem sendo acobertada politicamente pelo ideário neoliberal, que traduz a submissão da política, da cultura, da educação e das novas tecnologias, às necessidades espontâneas de um novo salto no processo de acumulação, organicamente desenhado pelo capital financeiro em escala mundial.
6. A radicalização da segregação social nos últimos 30 anos, distribuiu, equitativamente, os efeitos perversos deste processo, mas é no âmbito dos centros urbanos que se colocam os elementos mais típicos do novo poder monopolista-midiático e em que os seus efeitos políticos explodem de maneira mais universal, inclusive aquelas questões que eram consideradas exclusivamente agrárias: é nas cidades que a crise se torna mais potencialmente ameaçadora e ao mesmo tempo mais estimulante ao ponto de vista estratégico, para se pensar um novo projeto socialista.
7. A crise do Estado estimulou o surgimento de novas formas de organização pública, por meio das quais as demandas não aceitas ou não respondidas pelos governos, estruturam-se num imenso circuito de representação pública que transcende os partidos democráticos e de esquerda e criam formas autônomas de poder e influência ao lado dos velhos sindicatos acuados pelo desemprego "estrutural", pela nova horizontalidade do processo produtivo e pela reorganização das classes e frações de classe, num mundo cada vez mais integrado e interdependente.
8. O direito do Estado moderno não contém instituições públicas capazes de abranger este novo universo social, nem no plano interno, nem no âmbito do direito internacional; de uma parte porque a resposta meramente jurídica é incapaz de reformar o Estado ou refazê-lo; de outra, porque as reformas propostas sob o ângulo liberal, ou neoliberal, visam a despotencializar os novos e velhos sujeitos, cujos interesses são contraditórios com a ordem neoliberal, e suas exigências só podem ser contempladas por um novo modo de vida, um novo tipo de Estado e uma nova organização social, apta para socializar -não para concentrar- os benefícios da terceira revolução tecnológica.
9. A questão democrática torna-se, neste contexto, o eixo de uma estratégia transformadora, pois a sua efetividade só pode se dar, desconstituindo o Estado e o direito atuais, que são incapazes de abrigar, resolver e mediar as demandas mais elementares de uma cidadania que é, ou excluída e jogada no mundo informal, ou integrada e submetida à lógica dos interesses monopolistas.
10. No novo mundo do trabalho, por exemplo, é preciso reinventar tutelas jurídicas para as novas relações de trabalho e prestação de serviços, que advém das novas formas de produzir. O movimento global de desregulamentação da sociedade, que parte das relações de mercado, chega aos diversos ramos do direito e tem especial predileção pelo direito do trabalho. Tal movimento não é, como pensam alguns, uma invenção da teoria neoliberal ou de políticos conservadores. É, na verdade, a resposta espontânea e anárquica -colada diretamente ao movimento e às necessidades do capital- às exigências da terceira revolução científico-tecnológica.
11. O surgimento de novas formas de dominação e exclusão também produziram, espontaneamente ou não, novas formas de autonomia e de "inclusão alternativa" -ao lado ou contra o Estado- com a enunciação de um novo espaço público não-dependente do Estado -uma esfera pública não-estatal- auto-organizada ou simplesmente organizada paralelamente ao Estado, mas que se obriga reiteradamente a remeter ao Estado, para interferir na vida pública ou sustentar seus interesses diretos.
12. Esta nova esfera pública não-estatal, que incide sobre o Estado, com ou sem o suporte da representação política tradicional, é constituída por milhares de organizações locais, regionais, nacionais e internacionais, que promovem sua auto-organização por interesses particulares (desde a atenção para doenças, luta pela habitação e pela terra até entidades de demandas tipicamente comunitárias etc.) e podem ser mediadoras da ação política direta dos cidadãos por seus interesses, sob seu controle, sem amarrar-se no direito estatal que regula a representação política.
13. Os governos locais em cidades estratégicas podem e devem ser palco de experimentação política de alcance universal, à medida que instituem um processo combinado de democracia representativa com formas democráticas diretas de caráter voluntário, gerando normativas de uma nova relação Estado-sociedade, articulando a representação política com a mobilização desta nova e vigorosa esfera pública, que já existe independentemente da decisão estatal.
14. Trata-se de compartilhar uma nova concepção de reforma do Estado, a partir de uma nova relação Estado-sociedade, que abra o Estado a estas organizações sociais (e à participação do cidadão isolado), particularmente aquelas que são auto-organizadas pelos excluídos de todos os matizes, admitindo a tensão política como método decisório e dissolvendo o autoritarismo do Estado tradicional sob pressão da sociedade organizada.
15. Tal processo deve romper as fronteiras burocráticas que separam o Estado do cidadão comum, produzindo resultados concretos na qualidade de vida dos segregados, explorados e excluídos, ao produzir um novo espaço público para decisões de alcance imediato ou estratégico, renunciando -a representação política- expressamente às decisões que se originam exclusivamente da sua potestade institucional, para produzir um consenso a partir daqueles interesses que o projeto neoliberal considera politicamente irrelevantes e economicamente inviáveis.
16. Este movimento conscientemente orientado por decisão política transformadora indica, assim, uma co-gestão pública, estatal e não-estatal, por meio da qual a legitimidade da representação é permanentemente regenerada pela democratização radical das decisões, que são "devolvidas" à comunidade em forma de políticas, ações governamentais, que conferem identidade aos participantes do processo e se ampliam na sociedade, alterando o cotidiano da cidade e interferindo na compreensão política da sua cidadania.
17. A incidência sobre a vida econômica da cidade, a produção de políticas de assistência social e a realização de obras prioritárias de interesse popular evidente constituem os fins alcançados para serem geridos por este novo modo de decidir, pois são aqueles que, além de entranhar-se mais diretamente na estrutura de classes da cidade, permitem uma relação mais direta com as classes populares e constituem experiências aptas para a dedução de políticas regionais e nacionais.
18. O elemento central do poder público é a peça orçamentária e a sua construção democrática e participativa, "via" uma esfera pública não-estatal, legitimada por contrato político a partir do governo; e esta construção traduz o momento mais importante de uma co-gestão estatal e pública não-estatal, estimuladora de consensos majoritários a partir de uma diretriz política irrenunciável: os interesses "subalternos" tendem a se tornar os interesses dominantes e a cidade não pode ser mais uma cidade para poucos, mas uma cidade para todos.
19. A ação econômico-organizativa dos governos locais, orientada pela gestão do Estado e co-gestão pública não-estatal, visa não só à regulação para o desenvolvimento econômico local, de ca than one copy of the specified program.YCannot open file. Start the application used to create this file, and open it from there.

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