São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O olhar do garoto

FABIO DE SOUZA ANDRADE

Roddy Doyle poderia ser apenas um irlandês que sabe manejar as palavras, autor de mais um ciclo de romances banais, destes que o cinema engole e regurgita às dúzias. Foi este o destino de sua trilogia sobre o dia-a-dia de um subúrbio operário de Dublin, filmada por Alan Parker e Stephen Frears. Mas a literatura de Doyle ganha relevo e interesse próprios em "Paddy Clark Ha Ha Ha". Nele, o autor, por anos a fio professor de uma escola primária na Irlanda, faz do Clark do título, um menino de dez anos, o observador e juiz dos personagens que povoam Barrytown, o bairro imaginário em que reina e apronta.
A perspectiva infantil não é, no caso, um recurso facilitador -como no caso da linguagem publicitária que, na falta de idéias, aparece com uma versão excessivamente maquiada e falsa da "inocência" dos anjinhos da cara suja. Serviu a Doyle como antídoto à queda no surrado realismo formal, que talvez ainda preserve algum interesse antropológico -se alguém ainda se dá ao luxo de ignorar o que é o cotidiano das famílias de classe trabalhadora, driblando como pode as correntes do "metro-boulot-restau-dodo" (versão francesa rimada do nosso tedioso trabalho, casa, comida e cama)- mas em literatura cheira a mofo e anacronismo.
Como o impulso primeiro da literatura, expressivo e mimético a um só tempo, o olhar do garoto conhece o mundo por jogo -quando lhe interessa, recolhe a bola, suspende o fluxo do tempo e não brinca mais. O romance acompanha os estertores dessa sensação de onipotência de Patrick, os momentos que precedem uma revolução copernicana pessoal que, desgraçada mas inexoravelmente, vai varrê-lo do centro do universo e, como a um Prometeu em pequena escala, bicar sua disposição lúdica, amarrando-o a uma cadeia de compromissos.
Os domínios de Paddy enquanto imperador do mundo se estendem em círculos. Em casa, acompanha as relações dos pais e tiraniza Simbad, o irmão menor; na escola, conhece os rigores da disciplina arbitrária, testando os meios de burlá-la; com os amigos, as disputas de poder e a exploração conjunta do mundo, em constante expansão, de Barrytown -os canteiros de obra, os banhos na represa, o futebol nas ruas etc. Não é apenas a geografia do bairro, pontilhado de sobradinhos operários (pequenos jardins à frente, conjuntos habitacionais ao lado, bares na esquina) ou a riqueza na captura dos tipos locais que convencem o leitor.
Paddy é um ativo e um contemplativo. Seu interesse pelo mundo é o da descoberta, das leituras disparatadas à luz de lanterna sob o lençol, das experiências científicas com formigueiros queimados e minhocas engolidas, do teatralizar as novidades com sabor de almanaque (como quando se faz passar por um missionário junto a leprosos na África e obriga o irmão a agarrá-lo pelos pés, implorando pela misericórdia de Kamiano, um certo frei Damião; ou idolatra tanto o artilheiro George Best, quanto o pele-vermelha Geronimo).
Os assuntos e os atos se equivalem: o campeonato inglês, a guerra do Vietnã, os métodos de disparar as campainhas ou acender fogueiras proibidas com a ajuda de uma lupa são tratados com a mesma diligência e seriedade. Daí a estrutura peculiar do livro, recusando o ordenamento em capítulos e reproduzindo a experiência caótica, sensível do torvelinho de acontecimentos e fantasias que vão, aos poucos, esboçando o caráter do menino.
Neste contexto, as palavras são um brinquedo tão importante quanto a bola. Os jogos criptográficos, as línguas inventadas, a tentativa de dividir a leitura do jornal com o pai, o fascínio pelos apelidos e o riso liberador com que os garotos tomam posse dos palavrões e da linguagem obscena são testemunho de uma sensibilidade estética espontânea, a infantil. Refletido pela consciência do menino, o tempo se encadeia numa sucessão incessante de episódios corriqueiros (uma briga de rua, doces roubados na venda, um rato na privada, o primeiro cigarro clandestino, uma noite em claro), mas nunca ordinários. Prismatizam o aprendizado e crítica do mundo, de preconceitos e hierarquia, em meio ao diz-que-diz da periferia.
As maldades frias de que as crianças são capazes, as humilhações e torturas que servem de ritos de iniciação às turmas aparecem com destaque nas aventuras de Paddy. Ainda assim, não se trata da selvageria alegórica de um William Golding em "Lord of the Flies", em que crianças deixadas a sós revertem a um comportamento bestial, a um estado de natureza bem longe do ideal de Rousseau, ou da pressão do grupo levando a revolta infantil contra os adultos ao extremo da violência, como em "O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar", de Yukio Mishima. Torturar um cão minuciosamente, maltratar com método o irmão menor, humilhar e rir de colegas em desgraça são atos que o romance traz como tributo realista à vontade de constantemente pôr à prova a própria força, sem limites.
Contra este pano de fundo convincente da vida de qualquer garoto, Doyle elabora a tragédia pessoal de Paddy Clark. A intuição aguçada das crianças para os desequilíbrios na vida familiar é a responsável pela substituição do tempo da festa e do descompromisso pelo do amadurecimento, pondo um fim na infância do menino. Paddy acompanha, desde os primeiros sinais, a progressiva separação dos pais. Lembrando Pu, o alter ego infantil de Ingmar Bergman em "Crianças de Domingo", Paddy tenta consertar o chão que se parte sob seus pés, converter-se em mediador e pacificador de conflitos.
O esforço desesperado e impotente redunda na descoberta da própria falibilidade: uma noite em claro não pode, desgraçadamente, impedir os pais de brigar, um comentário estudado nem sempre faz as vezes de panos quentes. Quando Paddy joga a toalha e o pai finalmente vai embora, vai com ele a originalidade do olhar singular do menino, que Doyle explora, com talento, para fugir da banalização do romance. O Ha Ha Ha do título, com que os outros meninos caçoam da família desfeita, não deixa de ser a senha amarga com que Paddy é admitido ao mundo adulto, monocórdio, de menos brilho e interesse.

Texto Anterior: Liras românticas
Próximo Texto: Temas e tempos de outrora
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.