São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 1996
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Light: privatização à moda Ioiô ou à viúva Porcina

LUIZ PINGUELLI ROSA

Curiosa privatização a da Light, festejada pela mídia como a maior privatização do governo.
Uma estatal francesa, de propriedade do Estado francês, a EDF, ganhou o controle da Light, que era empresa brasileira de economia mista, ou seja, era uma sociedade da União com capitais privados. A EDF se associou neste caso a dois grupos norte-americanos.
Os empresários brasileiros, que se diziam tão interessados em investir no setor, mal totalizaram 10% do capital no leilão.
Mas o grupo controlador estrangeiro liderado pela EDF também só comprou 34% das ações, obrigando o BNDES a auto-comprar, um novo verbo, de si mesmo, mais de 9%.
Portanto, somadas as ações retidas pela União, o Estado permanece sendo o acionista majoritário, com mais de 50% das ações, e é legalmente responsável pelo controle da empresa. Entretanto, renunciou exercê-lo, dando-o de presente à EDF.
Fez tal gentileza com o que pertence de direito ao contribuinte, sem consultá-lo.
A Light não era do governo, transitório, mas do Estado, uma instituição permanente, a despeito do conceito de soberania relativa esposado pelo atual governo, como mostrei em outro artigo.
Assim, ocorreu desnacionalização, mas não privatização, a menos que seja interpretada como relativa também.
Parece que estatais européias são igualadas na América Latina a empresas privadas pelo Banco Mundial, cujos manuais são como o livro vermelho do Mao para o neoliberalismo, tão dogmático quanto o stalinismo.
Além disso, os 9% da Light que o BNDES comprou do BNDES poderão agora ser vendidos pelo BNDES sem a licitação que o BNDES é obrigado a fazer, pela lei de concessões de serviços públicos. Como os juízes são o que são neste país tropical, não adianta arguir nada disso na Justiça.
De um ponto de vista técnico, o controle pela EDF, estatal melhor que a quase totalidade das empresas elétricas privadas, é preferível à compra da Light pela Chilectra, que representa grupos financeiros aéticos.
Em debate na "TVE", gravado antes do leilão, a diretoria de privatizações do BNDES disse que a EDF ganharia a licitação.
Sem extrapolar nenhuma acusação de corrupção, isso mostra que o leilão, durando sete minutos, foi mera formalidade. O acerto prévio é comum em um negócio desta magnitude.
Só os ingênuos e os espertos dizem vigorar o livre mercado na venda de empresas elétricas em leilão. Haveria se se pulverizassem as ações.
Agora vem a novela da aplicação dos recursos da venda. Governo, empresários e mídia compartilham da mesma crença de que privatização é como remédio milagroso de camelô: cura todos os males.
Pode abater a dívida pública, mas o BNDES dizia que era para a expansão do setor elétrico.
Já o governo do Rio de Janeiro queria parte da verba para ciência e tecnologia, para compensar o que cortou do Orçamento e acalmar os cientistas.
Enfim o governo federal irá queimar tudo para pagar dívidas, como o herdeiro viciado que vende a casa da família para saldar dívidas de jogo.
Entretanto o bilhãozinho de reais apurado é uma pequena fração da dúzia de bilhões que o governo generosamente gastou com bancos falidos ou das dezenas de bilhões que paga de juros ao setor privado, como mostrou reportagem recente da Folha.
Resta crer que irão reduzir tarifas, melhorar a qualidade e a eficiência. Mas isso pode não ocorrer.
O contrato de licitação garante a manutenção da tarifa com correções por oito anos, fazendo com que qualquer redução de custos não beneficie o consumidor, apesar de uma jornalista de economia ter dito o contrário na "Globo".
No que se refere à qualidade, os índices de interrupção da Escelsa pioraram com a privatização (1) e, no caso da Light, o contrato autoriza que eles também piorem após a privatização (2).
Em São Paulo os índices das empresas elétricas estaduais são muito melhores que os das concessionárias privadas (3). Quanto à eficiência, a Escelsa dava lucro quando estatal (R$ 32 milhões em 1994) e deu prejuízo (R$ 99 milhões), em 1995, após a privatização.
A título de reflexão: o BNDES financiou o Banco Nacional, antes de falir, para comprar de Furnas a usina de Serra da Mesa. O Nacional faliu e a usina ficou sob controle do Banco Central: voltou para o Estado! Pode-se chamar isso de privatização ioiô ou bumerangue: vai e volta para as mãos do Estado.
A da Light, controlada por uma estatal estrangeira e com a União como acionista majoritária, pode ser chamada de privatização à moda viúva Porcina, a que foi sem nunca ter sido, ou da Batalha de Itararé, heróica mas que jamais ocorreu.

1 - O índice de duração de interrupção (DEC) da Escelsa passou de 28,37 para 35,67 e o de frequência (FEC) de 25,33 para 27,21.
2 - Os melhores índices da Light nos últimos anos foram DEC - 14,82 e FEC - 14,64 em 1992, mas o contrato autoriza após privatizar que sejam 19,30 e 16,83 respectivamente.
3 - Em S. Paulo o DEC das estaduais está na faixa de 10 e o das concessionárias privadas entre 28 e 32.

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