São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O destino numeroso de torcer para o Cruzeiro

SANDRA STARLING
ESPECIAL PARA A FOLHA

À memória de Nelson Rodrigues, que praticava o erro de ser machista, mas sabia cultivar o amor pelo futebol
"O coração tem razões que a própria razão desconhece", ensinava Pascal. A mim me foi dado o destino numeroso de ser cruzeirense, de participar da exaltação provocada por uma camisa azul e branca, decorada com as estrelas do Cruzeiro do Sul, que outrora transcorria por humildes campos de Minas nas tardes de domingo, mas que hoje arrasta multidões a estádios monumentais ao redor do mundo, ou nos eletriza por meio das ondas de televisão que integram a aldeia global.
Mudaram-se os meios, mas a paixão permanece intocada, como a Ítaca eterna e azul de Homero, destinada a ressoar para sempre em minha alma.
Antes de ser um time, o Cruzeiro, para mim, é uma paixão, e é da natureza das paixões não se deixarem reduzir aos parâmetros e equações da economia. Porque, se a economia é cinza, a terra é azul como a camisa do Cruzeiro.
Não me comove portanto saber se o adversário é ou não financiado por esta ou aquela multinacional, multimilionária. Busco sobretudo fruir o momento mágico em que o balé viril, dançado por 11 atletas, se converte na alegria do gol, que percorre instantânea cidades, campos, nações, provocando o riso, arrancando as lágrimas, iluminando cotidianos tristes com a faísca elétrica da felicidade.
Hoje, quero ver a coreografia regida por Palhinha, sustentada por Nonato, defendida por Dida e partilhada por todos os jogadores do Cruzeiro se transformar em gols.
Nas asas desta paixão ilimitada já vivi momentos inesquecíveis. Em 1966, ouvi de joelhos a final do Campeonato Mineiro, presa em casa para amamentar minha primeira filha. Em 1969 fui doente ao Mineirão assistir Cruzeiro e Santa Cruz, ocultando meu estado para não perder o jogo.
Hoje, esteja onde estiver, na vida que abracei, não apenas verei o jogo, mas anunciarei os gols a meu marido -também ele cruzeirense doente-, mas que evita ver os jogos com medo de sofrer um infarto.
Com os olhos colados na televisão, acompanharei com o coração na mão cada um dos movimentos da partida, oscilarei da depressão à exaltação segundo o local em que se encontre a bola, sempre acalentando a esperança inesgotável na vitória, mesmo quando ela se afigure impossível, mesmo quando todos os fatores se combinem para decretar a derrota.
Muitos anos de fidelidade às estrelas do Cruzeiro me tornaram invulnerável às noites nubladas, às eventuais derrotas, conquistei o direito de repetir com o poeta: "Renasci muitas vezes do fundo de estrelas derrotadas, reconstruindo o fio das eternidades que povoei com minhas mãos".
Mas estou certa que, no frio desta noite, as estrelas do Cruzeiro do Sul incendiarão os corações mineiros e eu poderei parafrasear Pablo Neruda: Não me pertence mais a sombra que indaguei, eu tenho a alegria duradoura de ser estrela, a herança dos bosques e o vento dos caminhos da vitória. Cruzeiro Esporte Clube, aqui me tens.

Texto Anterior: Juiz rejeita processo da 'fita do suborno'
Próximo Texto: Em Birmingham
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.