São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
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O império absoluto das imagens

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O cinema é um vício que deixa suas marcas no próprio corpo." Eis uma conclusão que revela conhecimento íntimo e profundo com o mais importante fenômeno cultural do século 20. Várias outras do mesmo teor e poder de síntese se multiplicam pelos ensaios dessa coletânea de Fredric Jameson, tornando sua leitura uma experiência rica em descobertas surpreendentes e análises desconcertantes. Sendo um marxista ao mesmo tempo convicto e consistente, Jameson manifesta ademais uma ilimitada versatilidade teórica, que lhe permite transitar de Aristóteles a Lacan, de Marx a Guy Debord, de Barthes a Hitchcock e de volta ao dr. Spock. Eis um livro de quem sabe como saber das coisas.
O eixo comum que une os oito ensaios é a busca das condições históricas de emergência de um sistema cultural centrado na visualidade, a característica mais singular e preponderante do nosso tempo, tendo no cinema o mais importante elemento de constituição tanto de seu repertório de imagens, quanto de seus processos de interação com o imaginário social.
O advento desse sistema impôs uma situação tal que, "todas as lutas de poder e de desejo têm de acontecer aqui, entre o domínio do olhar e a riqueza ilimitada do objeto visual". São essas condições que propiciam a germinação da "libido escóptica", o desejo fixado na superfície visível da imagem, desinvestido de qualquer substância ou profundidade do real. É considerando o extraordinário poder de mobilização concentrado nessa epiderme de celulóide, que leva Jameson à afirmação categórica de que, "o visual é essencialmente pornográfico, isto é, sua finalidade é a fascinação irracional, o arrebatamento".
Essa sexualização das imagens desliza facilmente, como todos sabemos, graças às manobras de prestidigitação da publicidade, para a sexualização dos objetos, desencadeando a mercantilização universal das coisas e dos seres, num processo geral de reificação do mundo pela sua capa visível.
Conforme a observação de Adorno-Horkheimer, "tudo na sociedade de consumo assumiu uma dimensão estética". Essas são a constatação, a análise e a avaliação do estatuto da Era da Imagem. O objetivo maior de Jameson, porém, é o de transcender esse momento e sondar práticas políticas que suscitem a crítica e a transformação desse contexto, partindo, como é inevitável, das suas próprias condições de operação e reprodução.
Nessa linha ele revê tanto as formulações de Brecht-Benjamin, no sentido de sua expectativa de que as novas tecnologias de comunicação traziam um potencial emancipador intrínseco, quanto às análises de Adorno-Horkheimer, fundamentadas no poder corrosivo e transformador das vanguardas modernistas. As condições do presente, a hegemonia implantada de uma cultura popular de massa, obrigam a requalificar ambas as tradições críticas.
Hoje, "tudo é mediado pela cultura, até o ponto em que mesmo os níveis político e ideológico devem ser desemaranhados de seu modo primário de representação que é cultural". Se tudo é cultura e a cultura são redes de imagens, Jameson entende a crítica cultural como a prática política por excelência e o enfrentamento da dimensão mítica da imagem como sua estratégia mais contundente.
Sua hipótese central é a de que "as obras de cultura de massa não podem manipular a menos que ofereçam um grão genuíno de conteúdo, como paga ao público prestes a ser tão manipulado". É, em suma, esse "grão genuíno" que ele procura em meio ao deserto árido e onipresente da cultura popular de massa.
Quer queira, quer não, é dessa substância que a cultura de massa tem que se nutrir se pretender obter algum impacto social significativo. Nessa manobra ela incorpora e revela índices das tensões mais candentes do meio social. O problema é que o que ela incorpora como índice, ao ganhar repercussão, ela destrói pelo metabolismo da iconização e repetição infinita.
Como então escapar da imagem pela imagem, se pergunta perplexo o professor Jameson? É o que o leva a conjecturar sobre as potencialidades da câmera e sobre os segredos ainda mal conhecidos desse "aparelho curioso, no qual a máquina e a percepção estão ligadas mais afetiva e simbioticamente do que o corpo e a mente".
É também o que lhe inspira divagar sobre os diferentes modos de produzir significação do filme em preto-e-branco e do colorido. Ao largo de todos esses caminhos ele vai compondo uma trajetória própria na qual, com cacos sucateados do império da imagem e o frescor de cenas discrepantes das estéticas oficiais, agrega vultos de um universo estranho. Um mundo no qual as sombras só sobrevivem se resgatarem o ser de que emanam.

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