São Paulo, segunda-feira, 17 de junho de 1996
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Vontade de saber afronta direito à privacidade

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Vejo a notícia na TV: acharam alguns fios de cabelos de Beethoven. E cientistas se preparam para uma longa investigação baseada neles. Querem saber se Beethoven teve algumas doenças, se sofreu ou não de sífilis, como se medicou.
Imagino que uma pesquisa desse porte deva custar um bom dinheiro. Vale a pena?
Nada detém a vontade de saber. Pode-se falar de privacidade no caso de Beethoven, morto há tanto tempo? Tanto ele como seus amigos, o universo de sua época, tudo isso é uma sinfonia acabada.
Mas o que dizer dos vivos? Um ministro resolve fazer uma pequena intervenção cirúrgica em ambulatório. Repórteres descobrem e investigam, chegando implacavelmente à causa da intervenção: hemorróidas. Precisava?
A mulher do bicheiro Castor de Andrade resolve denunciar seu ex-amante. Ela divulga listas, vídeos, alguns deles importantes para conhecer as relações entre a polícia e a contravenção. Seguimos a sequência de denúncias com interesse e, de repente, a surpresa. Não havia mais denúncias, mas apenas dados sobre as preferências sexuais de Castor. Qual a importância delas na revelação dos subterrâneos do jogo do bicho?
Deputados e jornalistas entram na Clínica Santa Genoveva, onde morreram quase cem velhinhos. As câmeras apontam para todo lado, apontam gente doente, suja, desesperada.
Um dos deputados, médico, se retira, horrorizado: não se podem fotografar pacientes, exceto com o consentimento deles.
Os casos podem se multiplicar e acontecem num momento delicado, quando algumas forças políticas querem impor uma lei de imprensa que poderia muito bem ser substituída por um conselho das próprias empresas, criando seu código ético. Como a indústria de cinema nos EUA.
Os políticos se referem apenas a notícias erradas. Mas as que foram alinhadas nos exemplos estão absolutamente corretas. O ministro fez mesmo uma pequena operação de hemorróidas, a ex-mulher de Castor relatou, de fato, suas preferências sexuais, os velhinhos foram mostrados sem nenhum retoque.
A vontade de saber esbarra no direito à privacidade, ao direito de esconder da cena pública alguns aspectos da vida, alguns tropeços do corpo. Por que não?
A vontade de saber se legitima na necessidade democrática de tudo informar. Mas onde estão os limites, onde demarcar essa fronteira sutil? Cada pessoa sabe o que não mostrar.
É, também, uma negociação singular com a mídia: aqui está a linha que divide a luz da escuridão, por favor, não ultrapassem. Mas é preciso também uma negociação geral, regras válidas para todos. Dizer isso pode até atrair uma reação negativa. Mas só vivendo o outro lado da notícia para saber que notícia também fere, tem um enorme poder de dilacerar.
Isso tudo transcende à imprensa. Há mais gente com sede de saber. Burocratas estatais querem uma identidade com idade, nome dos pais. Empresas investigam tudo sobre nossa saúde financeira, todos sabem, todos saúdam o dia de nosso aniversário. Malas diretas trocam de mãos, como qualquer mercadoria.
Estamos chegando a uma encruzilhada que talvez possa ser descrita assim: reconhecer a dignidade de uma folha de parreira, sem esquecer a de um corpo nu.
Nas mil e uma transações entre pessoas e imagens, o fim de século pode ser mais que um espetáculo de striptease, mas pode marcar também um grande respeito pela subjetividade humana, a reforma que garanta a todos um minifúndio de segredos individuais, o merecido espaço interior.

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