São Paulo, quinta-feira, 20 de junho de 1996
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Mitchell me fez descobrir o mundo como repórter

DAVID DREW ZINGG
EM SAMPA

A morte é assustadora, e procuro pensar nela o mínimo possível.
Mas outro dia o carteiro me trouxe uma notícia triste.
A revista "The New Yorker" me chegou com um mês de atraso, como de costume, e anunciou a morte de Joseph Mitchell, o homem que eu mais admirava enquanto repórter.
Mitchell morreu na idade madura de 87 anos. Ele já era famoso como repórter da vida e dos costumes de Nova York antes de Harold Ross contratá-lo para trabalhar na "New Yorker", onde iria exercer seu ofício por meros 58 anos.
Foi na revista que Joe Mitchell elevou a reportagem de destaque -que era conhecida como "Perfil"- à categoria de trabalho de arte.
Naqueles tempos, a revista pagava a seus repórteres e articulistas uma fortuna -US$ 1 por palavra-, de modo que podiam passar meses ou anos aperfeiçoando seus artigos.
No obituário que fez de Joe Mitchell, a "New Yorker" lembrou que:
"Agora livre para operar com a paciência e a ponderação às quais nenhum jornal pode dar-se ao luxo, Mitchell passava semanas seguidas com os sujeitos de suas reportagens, ouvindo suas histórias, bebendo com eles, estudando o padrão de sua fala, observando como trabalhavam, como andavam, como suportavam o peso de seus dias e noites.
"Depois voltava à rua 43 e escrevia suas sentenças. Ele era capaz de iniciar uma história de maneira que ninguém mais fazia. 'De quando em quando, buscando apagar de minha mente os pensamentos de morte e juízo final, me levanto cedo e vou ao mercado de peixes de Fulton."'
O obituário dizia que a prosa de Mitchell era límpida, áspera, declarativa, repleta de silêncios sombrios:
"Muitas vezes me sinto atraído pelo rio Hudson", disse Mitchell.
"E no decorrer dos anos passei muito tempo andando pela parte dele que passa pela cidade. Nunca me canso de olhá-lo; ele me hipnotiza. Gosto de olhar o rio no verão, quando suas águas estão mornas, sujas e sonolentas, e gosto de olhá-lo em janeiro, quando está cheio de gelo. Gosto de olhá-lo quando está agitado, quando sopra um vento nordeste e a maré está forte -maré de lua nova ou maré de lua cheia- e gosto de olhá-lo quando está parado."
Mitchell levava talvez uma semana para fazer seus perfis, ou, mais provavelmente, ainda mais -um mês ou um ano. Como diz a "New Yorker", "Mitchell levava o tempo que fosse preciso".
Para aqueles de nós que crescemos em Nova York nos anos 30 e 40, a "New Yorker" era a universidade que nos ensinava a conhecer o mundo e apreciar as sutilezas do humor refinado. A revista e seus repórteres, como Mitchell, eram nossos professores.
Joe Mitchell firmou minha vontade de me tornar jornalista, de maneira que nunca tive a oportunidade de lhe dizer.
Em 1941, eu ganhava US$ 14,50 por semana como mensageiro na redação da National Broadcasting Company. Uma vez por mês, no dia de pagamento, eu tinha por hábito vestir meu terno de domingo, comprar a "New Yorker" na banca de jornais de Radio City e me convidar para um jantar solitário no famoso restaurante de propriedade do sr. Toots Shor.
O estabelecimento de Toots Shor era o ponto de encontro nova-iorquino de homens famosos no mundo do jornalismo e dos esportes. Um tímido mensageiro demonstrava ousadia em jantar num ambiente tão estratosférico.
Eu me sentava sozinho à minha mesa e pedia um prato de picadinho de "corned beef" com um ovo em cima. O garçom colocava um vidro de molho Tabasco ao lado do meu prato.
Enquanto eu esperava, passava o tempo lendo o rótulo do vidrinho de molho apimentado. "O molho Tabasco é produzido na ilha de Avery, Louisiana, a partir de uma receita tradicional", dizia o rótulo, "numa terra antes dominada por piratas do mar do Caribe."
Quando eu terminava de explorar o rótulo, abria meu exemplar da "New Yorker". Eu procurava um novo perfil escrito pelo repórter que tanto admirava, Joseph Mitchell. Meus cabelos se arrepiavam quando eu lia a coincidência da introdução de sua matéria.
Nela, Mitchell contava que também havia se sentado para comer picadinho de "corned beef" no Shor's. Ele também havia passado o tempo lendo o texto do molho Tabasco.
Mas Joe Mitchell levara sua curiosidade adiante.
"No dia seguinte," escreveu Joe Mitchell em seu artigo na "New Yorker", "eu estava num avião em direção a Louisiana, para descobrir como é feito o Tabasco."
E seguia, em várias partes, um longo e enciclopédico estudo da pimenta "capiscum", suas origens, sua história e sua influência profunda sobre os hábitos alimentares humanos.
Naquela noite, profundamente comovido pela magia jornalística que transformara um jantar no restaurante Shor's em um ensaio de 50 mil palavras na "New Yorker", fiz uma resolução: descobrir o mundo como repórter.
Se Joe Mitchell puder ler esta coluna, eu gostaria de agradecê-lo por seu exemplo.
E eu adoraria ler um perfil de 50 mil palavras na "New Yorker" sobre como são as coisas onde quer que ele se encontre agora.

Tradução de Clara Allain

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