São Paulo, sexta-feira, 21 de junho de 1996
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Nenhum artista é inocente, nem Leni Riefenstahl

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Em 1934, a cineasta Leni Riefenstahl realizou, a pedido de Adolf Hitler, um documentário sobre o congresso do Partido Nacional-Socialista em Nurembergue.
O filme, "O Triunfo da Vontade", foi considerado um dos melhores documentários da história do cinema. Tratava-se também de pura propaganda nazista.
Leni Riefenstahl continuou colaborando com Hitler. E nunca se arrependeu do que fez. Com o fim da guerra, foi julgada por um tribunal de "desnazificação".
O veredicto foi que ela era apenas uma "simpatizante" do nazismo, não merecendo punição especial por isso. Em todo caso, nunca voltou a fazer filmes depois da guerra.
Está em cartaz no Espaço Unibanco um longo (3h10 de duração) documentário sobre ela, "Leni Riefenstahl, A Deusa Imperfeita" .
Com mais de 90 anos de idade, Riefenstahl está firme, sacudida e lúcida -se é que cabe o último termo. Mergulha no Caribe, tira fotos no fundo do mar, brinca com raias venenosas, filiou-se ao Greenpeace -ela que, como não se cansa de dizer, nunca foi filiada ao partido Nacional-Socialista.
Vemos toda a carreira de Riefenstahl. Começou nos anos 20, como bailarina. Depois, foi atriz em filmes de alpinismo.
Aprendeu a escalar montanhas e representou um papel em que tinha de fazer isso descalça. Aguentava avalanches na cara, sob as ordens de seu tirânico diretor, o dr. Fank.
Depois, assistiu a um comício de Hitler e apresentou-se a ele. Era uma mulher muito bonita. Goebbels, o chefe de propaganda do nazismo, teria ficado interessado nela. Leni diz que nenhum dos dois era seu tipo. Em todo caso, ficaram amigos.
Na intimidade, Hitler não era nenhum maníaco esganiçado. Pareceu a Leni um sujeito cortês, razoável, sensato. Como sempre acontece, aliás, quando conhecemos pessoalmente indivíduos que são detestáveis na vida pública.
O tempo todo, no documentário, Leni Riefenstahl justifica sua atuação durante o período nazista. Não se desculpa de nada, mas dá argumentos em favor de sua inocência.
São dos mais variados. Diz que, em seu documentário-propaganda sobre o congresso nazista, só ressaltou as frases de Hitler em favor da paz.
Nunca foi anti-semita. Nunca soube do que se passava nos campos de concentração. Detestava Goebbels. Foi filmar a invasão da Tchecoslováquia e voltou logo depois, horrorizada. Em 1934, data de seu filme, "90% dos alemães" confiavam em Hitler.
Prova de seu não-racismo, nos anos 70 encantou-se com uma tribo africana e tirou belas fotografias de guerreiros negros. Não escondeu a vitória de Jesse Owens, negro americano, nas Olimpíadas de 1936, em Berlim.
Susan Sontag, num ensaio sobre Riefenstahl ("Fascinante fascismo", in "Sob o Signo de Saturno, editora L&PM), acusa-a de nazismo mesmo nas fotos de negros africanos. Pois há sempre a mística do corpo perfeito, do atletismo mortífero, da disciplina, da guerra e da barbárie.
"Quatsch!" (besteira), vocifera Riefenstahl no documentário. O fato é que o julgamento moral dessa cineasta continua em curso. E ela se defende de todos os modos.
Acho sempre difícil julgar moralmente uma pessoa pública; o que interessa, na esfera pública, é o julgamento político, estético, intelectual; as razões pessoais de Leni serão, talvez, insondáveis. E, se as compreendermos, sempre tenderão a diminuir sua culpa ou sua responsabilidade.
Sempre nos colocamos no lugar daquela pessoa. Você teria feito aquele documentário? Respondo bravamente que não. Mas trata-se de uma especulação fictícia, porque eu nunca fui Leni Riefenstahl. Nem seria, aliás.
Para não me furtar a uma avaliação ética sobre o seu caso, digo apenas o seguinte. É bem possível que ela "não soubesse" nada dos horrores do nazismo.
Ela própria uma atleta, apaixonada de vitalidade, otimista, esteta, só via os "aspectos favoráveis" da coisa -atividade física, ideais de "comunidade" e "beleza".
Mas, se ela "não sabia" do resto, é porque simplesmente "não queria saber". Sua inocência parece-me claramente voluntária. Seus filmes são um delírio triunfal.
Tentei assistir, num plácido domingo, ao famoso documentário "O Triunfo da Vontade". Parei no meio. Nem sequer é um filme tão genial assim, e não achei tão bonito, tão artístico como dizem.
Imagens de povão comendo salsicha alternavam-se aos belos, sem dúvida, desfiles organizados por Hitler.
Fala-se muito de "estética fascista". O termo me parece exagerado e enganoso. Há uma estética universal, que das estátuas gregas aos atletas alemães, japoneses ou americanos de 36 corresponde à idéia de beleza física.
Há uma coisa bonita em desfiles, sejam nazistas, soviéticos ou brasileiros.
Um incêndio, uma explosão são bonitos também, quando a gente vê. Mas falar de "estética fascista" é como falar da "estética dos vulcões", da "estética das tragédias": não tem sentido.
Pois, se a beleza é neutra -uma mulher belíssima pode ser abominável-, a estética, ou melhor, a obra-de-arte, envolve outras coisas além da pura beleza.
Leni Riefenstahl até hoje se encanta com as cenas que ela própria filmou. Explica os truques de câmera, as invenções de filmagem de que foi capaz.
O problema básico, entretanto, é este: pode alguém realizar uma verdadeira obra-de-arte quando ignora totalmente -este é o argumento de Riefenstahl- o significado daquilo que está produzindo?
Ou seja, será obra-de-arte aquilo que é pura perfeição formal? Leni era perfeccionista. Era genial. Mas genial naquilo que, no cinema da época, se confundia com inventividade artesanal.
Não é à toa que há tantos gênios no cinema. Como se trata de arte recente, descobertas isoladas na técnica expressiva passam direto como "artisticidades" geniais.
Mas acho que, para se ser artista, é preciso ter imenso domínio dos meios de expressão. E imenso domínio, também, daquilo que se quer expressar.
Há uma relação óbvia e dialética entre uma coisa e outra, que só o formalismo técnico -o de Riefenstahl e outros- insiste em negar.
Nenhum artista é inocente. Se é inocente, como Leni Riefenstahl insiste em dizer que é, não é artista.
Quem "não sabe de nada", quando judeus são assassinados, pode não estar mesmo "sabendo de nada" -mas não está fazendo obra-de-arte; está só fazendo coisas bonitas, o que não é difícil. Tanto mais bonitas quanto menos se sabe.

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