São Paulo, sexta-feira, 21 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O estado de coma da Fiesp

RICARDO SEMLER

A caravana da saudade empresarial que foi a Brasília não passa de um sintoma. De um organismo fragilizado, cujo tempo de vida passou. O famoso poder da indústria é coisa do passado, e isso transparece no uso de táticas de sindicalistas e sem-terra. E, naturalmente, em bofetadas na cara ao chegar à praça do nenhum poder.
Foi Mário Amato, em sua primeira gestão, o último dos coronéis da indústria. Pôde manter a tradição de receber ministros na avenida Paulista, manter congressistas esperando para ser recebidos e fazer telefonemas que eram atendidos de pronto no Planalto.
Já sua segunda gestão sofreu a rachadura geológica do tempo. A abertura dos portos e a empáfia de Collor vieram como uma lufada de ar gelado. Indicar ministros era ainda possível, mas em tratativas indiretas. Afinal, alguns dos mais visíveis empresários-militantes da Fiesp haviam financiado o homem. Da mesma maneira que ativos participantes da Casa haviam financiado a Operação Oban e mantido uma relação incestuosa com o governo desde priscas eras.
Longe estavam os tempos de Roberto Simonsen, dos capitães dinâmicos da indústria nascente e da coesão filosófica. O modelo, baseado no raciocínio do Patronat francês, uma entidade anacrônica e autoritária, tinha tudo a ver com o Brasil de Getúlio, com o otimismo deslavado de Juscelino ou o apoio ostensivo à ditadura militar.
Aos poucos, as dissensões foram se formando, e sobravam na imponente pirâmide da Paulista: um aglomerado composto de poucos industriais influentes, uma massa de empresários de pequeno porte salivando para dar palpite e ter prestígio e ainda um número crescente de executivos de segundo escalão que assumiam como burocratas de uma organização que se perpetuava por meio da imponência presumida, já que a pirâmide passara a ser a única manifestação de pujança da entidade.
Onde Ermírio de Moraes, Olavo Setúbal, Paulo Villares ou Jorge Paulo Lehman estariam, fosse a entidade de real relevância, quedaram os burocratizados representantes de segundo escalão (com algumas valiosas exceções, como José Mindlin, o herói que continua emprestando tempo e sabedoria à casa).
Mas os grandes não se dignam a comparecer e, de fato, desanimariam com rapidez ante as reuniões sonolentas e sem sequência que se perpetram todas as segundas-feiras. Verdadeiro muro das lamentações. Que não muda de tom há quase uma década, limitando-se a se indignar ante os altos juros, as importações, a falta de política industrial do governo e a política contracionista. Aliás, fosse intercambiar as atas das reuniões de 1983, 87 ou 91 com as de hoje, duvido que fosse possível saber a diferença.
Vieram as dissensões. Primeiro, o PNBE, que pretendia aglomerar os empresários progressistas, tão mal representados pela casa. Depois o Iede, que reuniu substancial contingente de empresários de real magnitude com o intuito de ser um "think tank" de política industrial. Por último, o Simpi, campeão do microempresário. Enfim, formavam-se entidades paralelas, visando preencher as lacunas gritantes da Fiesp. Todas tiveram a sua parcial influência, mas acabaram por enfraquecer aceleradamente um organismo emasculado, sem criar uma alternativa viável.
A Fiesp não tem mais razão de ser. Não no formato clássico. A existência de um macrorrepresentante dos empresários é um conceito do passado, e isso vale para as federações do comércio, a CNI e tantas outras tentativas de exercer poder por meio da aglomeração. Todas as entidades desse tipo acabam por se burocratizar ao ponto da inatividade, são celeiros para barganhas de influência e corrupção, e terminam por atrair apenas interesses mesquinhos e figuras de pouca importância.
Não passa uma eleição em que não se troquem votos de sindicatos patronais inexpressivos por vagas na garagem. Ministro ou presidente de banco estatal não consegue visitar a pirâmide sem ser acostado para rolar uma dívida de algum dos empresários. E difícil é crer que ainda exista uma entidade que tenha sua diretoria eleita também por um colégio eleitoral indireto, composto de sindicatos de camisas brancas, guarda-chuvas e bengalas.
O futuro não está mais na manufatura. O poder se exercerá por meio das áreas empresariais mais malrepresentadas do Brasil: serviços, telecomunicações, mineração, agroindústria, mídia e informação. Malrepresentados porque não têm necessidade de se organizar em entidades formais.
O lobby dos fazendeiros e usineiros e as políticas de bastidores das indústrias da mídia e telecomunicações garantem grande influência em Brasília. Mas por meio do dinheiro, coisa que começou a faltar na indústria nacional há 15 anos. Mesmo as multinacionais, que antes resmungavam da falta de representação na Fiesp -que era, de fato, machista e xenofóbica-, já deram de ombros e se representam sozinhas, espetacularmente.
Esse envelhecimento não é precoce e nada reflete sobre o atual presidente. Esforça-se, inclusive, para coroar, na próxima gestão, gente jovem, dinâmica e bem relacionada, a exemplo de Luiz Furlan ou Horácio Piva, mas o organismo não requer um bom líder e sim uma cirurgia de extirpação.
Há que se reduzir o porte a um quinto do que é hoje, voltar a atrair os empresários representativos de todos os segmentos -especialmente das indústrias do futuro- e vender a triste pirâmide (como oitava maravilha dos faraós egípcios-paulistas) a fim de gerar dinheiro para estudos e intercâmbio internacional. O mesmo é verdade em relação ao Sesi, Sesc e Senai, admiráveis organizações em tese, mas anacrônicas em sua realidade. Há que se evitar que o patronato nacional se reduza a motivo de chacota e que esse organismo senil termine os seus dias vendendo os órgãos internos para salvar o coração. Pois coração ainda há, batendo lentamente, quase em estado de coma.

Ricardo Frank Semler, 37, empresário, é diretor-presidente da Semco Ltda. e autor de "Virando a Própria Mesa" e "Embrulhando o Próprio Peixe".

Texto Anterior: E a greve?
Próximo Texto: Os direitos dos trabalhadores
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.