São Paulo, sábado, 22 de junho de 1996
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O mundo está salvo, mas o Carnaval perdido

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Não sei de nenhum outro autor de livros, em qualquer gênero, que neste final de século tenha alcançado êxito igual ao de Simon Schama.
Inglês descendente de judeus lituanos, em três sucessivos livros de assombrosa erudição e estimulante leitura - "O Desconforto da Riqueza", "Cidadãos", "Paisagem e Memória"- o autor renova e liga indissoluvelmente nossa visão da história da arte e da história em si.
Rapidamente sugado pelo "brain-drain" americano, Schama já mora há algum tempo nos Estados Unidos, onde ensina na Universidade de Colúmbia e colabora regularmente na revista que é o carro-chefe do país, "The New Yorker".
Aliás, o "New Yorker" do dia 17 deste mês não só publica artigo de Schama sobre a exposição Cézanne no Museu de Arte da Filadélfia como dá ainda uma grande foto da reunião do que chamou a noite "Leões Literários", reunidos pela Biblioteca Pública de Nova York para celebrar seu centenário.
Lá está, nesse grupo de umas 30 pessoas, homens e mulheres, Simon Schama, aliás ouvindo algo que lhe diz Henry Kissinger. É a glória.
Já me ocupei de Simon Schama (Ilustrada, 8 de junho) quando o encontrei por ocasião da conferência que fez na Academia Brasileira de Letras. Eu andava então pela metade do seu "Paisagem e Memória" (Companhia das Letras) que só há pouco terminei.
Sempre que acabamos a leitura de um livro alentado assim, temos uma sensação de dever cumprido, de tarefa encerrada.
Mas Schama carrega com tanta verve as incontáveis estórias com que tece sua história, que nos despedimos com certa pena do volume, apesar de ser o dito volume grandão e pesado, como se devesse ser colocado num porta-missal e lido de pé.
"Paisagem e Memória" acaba com Schama traçando o perfil de Ralph David Thoreau, o pensador transcendentalista americano, o amigo de Ralph Waldo Emerson.
Os dois, Thoreau e Emerson, foram provavelmente os primeiros norte-americanos a serem lidos como ensaístas e pensadores na Europa, difundidos mundo afora.
Thoreau, a parte seus incontestáveis méritos, tinha algo biruta em seus hábitos radicais de retorno à natureza e sua dieta de bolotas, raízes e frutas silvestres colhidas nos campos.
Noivou um tempo, mas a noiva rompeu com ele. E Thoreau nunca mais parece ter se preocupado com mulher.
"Paisagem e Memória" poderia ostentar o título do outro livro, "O Desconforto da Riqueza", pois Schama acumula nele tantas posses que fica difícil contê-las na página ou resumi-las depois.
Só o que ele diz, por exemplo, sobre Bernini e suas fontes, ou sobre Walter Ralegh e o Eldorado sul-americano, mereceria o destaque de monografias independentes.
Vamos nos contentar em dar, das muitas riquezas do livro, a espécie de resumo que fornece o próprio autor de seu confronto final com Thoreau.
Thoreau é citado: "O mais feliz de todos os mortais é aquele que não perde um instante desta vida efêmera recordando o passado".
E comentado a seguir por Schama: "Thoreau rejeita a história porque a considera incompatível com a natureza. Acredite que, ao lidar com o mundo natural, a civilização geralmente procura amansá-lo e subjugá-lo, delimitando-o com fronteiras herbáceas e adornando-o com canteiros de plantas anuais".
E Schama dá sua resposta: "Nestas muitas páginas de 'Paisagem e Memória', tomei a liberdade de divergir e tentei montar uma história diferente. (...) E, embora pareça que nossa avidez em produzir tenha reduzido a terra a uma camada de pó, basta vasculhar seu subsolo para encontrar um barro rico de recordações. Não que sejamos mais virtuosos ou sábios do que supõe o mais pessimista dos ambientalistas. Apenas temos boa memória. Com o húmus lentamente acumulado ao longo das estações, a soma de nossos passados, uma geração após outra, forma o adubo de nossos futuros. Vivemos disso".
Simon Schama é, em suma, essa rara ave hoje em dia: apesar da desordem e da banalização mundial do mal em que parecemos todos vegetar, há salvação. Mesmo enquanto estivermos limitados a viver só aqui, na velha e cansada Terra. Se viermos a descobrir outros planetas viáveis, colonizáveis, tanto melhor. Mas a Terra permanece fértil, maternal. Nela já vivemos, e ainda viveremos, momentos do maior horror, mas igualmente de paz e beatitude.
Obras como, digamos, as de Bernini e Cézanne, e da criação de florestas como a de Fontainebleau, provam a infinita capacidade que temos de criar nossa própria memória e recriar paisagens que pareciam perdidas para sempre.
Viva o velho Carnaval
Esta é a época por excelência em que devemos falar nas festas juninas. Mas vou, nesta nota, falar no Carnaval, pois recebi da Musa Editora o livro "As Marchinhas de Carnaval", primeiro volume de uma prometida "Antologia Musical Popular Brasileira", organizada por Roberto Lapiccirella.
Este primeiro volume é só de marchas e vai da indiscutível e fundadora "Ó Abre Alas", de Chiquinha Gonzaga, composta em 1899 e gravada pela primeira vez em 1971 por Linda e Dircinha Batista, até "Coisa Acesa", de Moraes Moreira e Fausto Nilo, um frevo de 1982.
Informa o cartão da editora que me encaminhou o livro que "Lapiccirella é um sensível dono de bares no bairro de Pinheiros, São Paulo", e que o livro foi feito "para que o músico possa melhor manuseá-lo em meses de choperia ou de botequins".
O autor, na realidade, fez trabalho sofisticado, baseado nas gravações originais e com instruções técnicas para os que vão executar as músicas.
Para os que são leigos como eu e apenas sentem saudades dos tempos em que cada Carnaval acabava fulgurando para sempre numa música tirânica, inesquecível, folhear este livro é lamentar que não seja mais assim.
Os Carnavais de agora são gordos, adiposos, intermináveis, mas não deixam uma canção que seja na memória da gente.
Há no livro uma explicação para essa tristeza. "Nas décadas de 30 e 40, o custo de produção de um disco era baixo e sua difusão gratuita". Com "o desenvolvimento da indústria fonográfica, os custos de produção encareceram, dificultando o acesso e a penetração das músicas de Carnaval".
"Apesar de algumas tentativas isoladas (principalmente de Braguinha e do apresentador Silvio Santos), a canção carnavalesca passou a ser um investimento sem retorno."
Aí está. Ainda bem que a gente pode ir folheando este livro e lembrando "Dá Nela", de Ary Barroso, e "Tá-hi", de Joubert de Carvalho, ambos de 1930, ou "Teu Cabelo Não Nega", Lamartine Babo, 1931. Por aí vai.
Lapiccirella nos promete, a seguir, o volume de "Os Sambas Carnavalescos". Viva. Evoé.

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