São Paulo, domingo, 30 de junho de 1996
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"Não tenho medo da morte"

COSETTE ALVES

Depois de muita insistência minha, Paulo César Cavalcante Farias me recebe no dia 27 de novembro de 1992. Esta entrevista estava sendo guardada, até agora, para um livro no qual Paulo César seria o personagem principal.
Dia 23 de junho de 1996. Quatro anos depois, o corpo de Paulo César Farias, morto com um tiro no peito, é encontrado na cama, ao lado da namorada, também morta, em uma calma manhã de domingo alagoano.
PC Farias está morto e leva com ele todas as histórias e experiências de um turbulento capítulo da história brasileira, que ele viveu em um dos principais papéis.
Paulo César não é mais assunto do livro. A morte dramática provoca muitas reações nos brasileiros. De certa forma, tira Paulo César Farias da vida nacional e transforma-o, paradoxalmente, em um personagem mais real.
Não adianta mais falar ou inventar sobre Paulo César. Agora, como personagem, ele existe na forma final de um enigma.
Sou recebida na imensa casa que ele aluga em São Paulo, nos arredores do aeroporto de Congonhas. Paulo César Farias ocupa apenas o pavilhão perto da piscina.
Polido, oferece um cafezinho. Sentamos. Não é bonito, mas simpático. Surpreende-se com minha curiosidade e torna-se curioso sobre minha vida.
Voz suave, o ritmo e o cantado do Nordeste reduzem a tensão do encontro. Firme, comanda a entrevista.
Apesar de muito cuidadoso, é espontâneo. Fala muito, conta pouco.
De qualquer forma, o olhar revela tristeza, uma espécie de grito contido, uma angústia resignada e comovente.
Em 92, ele já era um fugitivo. Um homem marcado que talvez soubesse os sofrimentos que o aguardavam.
(Pergunta feita às 14h do dia 27.) Qual a primeira pergunta que faria a si mesmo?
Se eu soubesse que ser tesoureiro da campanha ia dar um rolo desse, eu não queria ser tesoureiro nunca.
(A mesma pergunta, feita duas horas depois.) Qual a primeira pergunta que faria a si mesmo?
Será que você se arrepende de ter sido tesoureiro de uma campanha vitoriosa? Eu diria que não.
(Uma mesma pergunta feita com diferença de poucas horas, com diferentes respostas.)
Tesoureiro da campanha de Collor
Se pudesse começar de novo, o que teria feito de diferente?
Eu talvez não tivesse enveredado por esse caminho político, apesar de não ser político atuante com mandato. Teria continuado minha vida empresarial.
Como é que você se sente sendo eleito, no momento, como a mãe da corrupção no Brasil?
Apesar da violência da campanha que foi feita contra mim, não me sinto péssimo, pois não me sinto culpado. Eu exercia um papel que já foi exercido por muita gente nesse país. Em função de uma problemática política, estou sendo pintado pela imprensa como um delinquente, coisa que não sou. Todos os tesoureiros de campanha já receberam pechas. Hugo Castello Branco, tesoureiro de Tancredo (Neves) na eleição indireta para Presidente da República. Eu li uma vez num jornal: 'Tancredo morreu, Zé Hugo morreu. Onde ficaram as sobras do dinheiro da campanha?'
Mas você acha justo ser eleito como bode expiatório e livrar os outros responsáveis?
Não, eu não acho justo isso. Eu acho que a imprensa, a mídia, realmente me fez de bode nesse processo. Eu estou inclusive sendo criticado por pessoas que não têm o direito de me criticar porque talvez tenham cometido os mesmos erros que cometi, mas acho que isso é uma fase da história. Vou tranquilamente cumprir o meu papel no que tange a mim. Me defender, provar isso.
O que você queria dizer com sua frase, naquele momento da CPI: 'Estamos sendo hipócritas aqui. Todos estão sendo hipócritas'?
A frase calou com profundidade porque não houve sequer um membro da comissão que ousasse dizer alguma coisa sobre ela. Aquilo é o peso da consciência de todos. Eu estava sendo ali investigado por algo que todos fazem.
Como começou essa história? O que o levou a sair para colher fundos para a campanha do presidente Collor (o impeachment foi em 29.09.92)?
O Fernando dizia: 'Eu vou sair. Não tenho partido. Vou sair por aí pregando e não vou ter problemas porque o PC resolve isso.' Essa virou minha responsabilidade. Do primeiro para o segundo turno, dá para dizer se houve diferença no seu trabalho?
Dá. Para você ter uma idéia, teve uma data importante: 14 de junho. Era a data de desincompatibilizações. O empresariado estava assuntando. Depois que o Quércia continuou no governo, eu sabia que a opção seria o Fernando. Pois Lula, Covas, Brizola e Afif não sensibilizavam. Fernando já vinha empatado com Brizola lá pelos 22%. A partir de julho, as contribuições começaram. Até julho, tivemos dificuldades em manter esse barco. Mas o primeiro turno tinha vários candidatos, e existe uma grande massa de candidatos que dá para todos ou para aqueles que pensem como eles. No segundo turno, foi uma avalanche. Aí, virou um processo ideológico. Eu recebia doações que nem sabia de onde vinham. Massas de títulos ao portador dos tais doadores anônimos que são, na realidade, os que dão para todos e que não querem aparecer. Pacotes de títulos ao portador, de ouro, de dólares, de tudo o que você pudesse imaginar. Nesse processo, tivemos três turnos. O primeiro, o segundo e o terceiro, que foi do dia 17 de dezembro (1989) a 15 de março, em que eu precisava manter aquela estrutura toda. Aquele 'bolo de noiva', com quase cem pessoas trabalhando, todas assalariadas. Avião para esse povo andar de lá para cá, porque uma coisa interessante é que não há economia em campanha. Então, ninguém queria mais andar de comercial, só de jato. Os custos foram aumentando assustadoramente. Pelo fato de o empresariado ter ajudado, era natural que o senhor 'fulano de tal' ou 'sicrano' me telefonasse pedindo uma audiência com o presidente. Nunca me detive no detalhe do que ele quereria falar com o presidente. Mas marcar audiência, eu marcava. Afinal, o cara tinha ajudado.
Até aí, tudo bem. Empresário não é pecador porque fala com o presidente.
Claro que não.
Como resolver o problema da ajuda nas campanhas?
Com uma lei clara pela qual a pessoa jurídica possa doar. A doação tem que ser oficializada. O partido tem que ter uma contabilidade. Entrada, saída, tudo legal. Acabar com essa história de por fora, de caixa dois. A França fez isso há seis meses. Agora, qualquer cidadão francês pode doar como pessoa física. Por causa daquele problema do 'Tapi'. Descobriu-se que ele tinha dado dinheiro da Adidas para a campanha do Mitterrand. Aí deu um problema muito sério, e eles mandaram para o Congresso uma lei nova fixando tudo, como na América. A doação é legalizada. Uma lei aberta, sem hipocrisia, isso resolveria muitos problemas.
Por que essa lei não veio até agora?
Por duas coisas. Você apresenta um balanço de campanha ao tribunal e, quando você gastou, digamos, US$ 30 milhões, você diz que gastou US$ 1 milhão, e o tribunal aceita com a maior naturalidade e arquiva. Porque até hoje, na história do país, não conheço nenhuma conta de campanha que não tenha sido arquivada absolutamente correta. Essa é a conivência. Segundo: a própria filosofia do empresariado brasileiro de trabalhar por fora, de ter caixa dois, de ter isso, de ter aquilo. No momento em que houvesse um fato e que esse fato já estivesse aí, quer dizer, você está vendo empresários de porte indo à Polícia Federal ter que se explicar. Está na hora realmente de se fazer uma legislação aberta, correta. Eu sou contra uma legislação como a americana no Brasil. Porque, na americana, o Tesouro aporta capital ao partido. E eu sou contra, principalmente com a legislação partidária que existe no Brasil. Nós vamos criar aí a indústria da formação dos partidos para obter dinheiro.
Então, na sua opinião, essa lei, a americana, não serve para nós?
Não, a americana não serve para nós. Tem que servir para nós a lei francesa. Porque, na lei francesa, o governo e o Tesouro não dão um centavo a partido nenhum, e, no Brasil, tem que ser a mesma coisa, nada de dinheiro do Tesouro para os partidos. Os partidos têm que sobreviver com a simpatia das suas pregações, assim você vai ter pessoas que vão ajudar.
Infância e família
Quando e onde você nasceu?
Na cidade de Murici, no Estado de Alagoas, uma pequenina cidade, em 20 de setembro de 1945.
Me conte uma coisa: você tem pai e mãe vivos?
Somente pai (morto em 3 de maio de 1996). Minha mãe morreu há cinco anos (nove anos).
Conte um pouquinho do seu pai.
Ele é uma pessoa interessante porque é muito pacífico, muito tranquilo. Foi um lutador na vida, quer dizer, ele exerce um cargo de funcionário público, coletor federal. Ele se dedicou a nossa educação com muita dificuldade, mas conseguiu educar todos e sempre exerceu um papel mais paternalista no processo.
Você sentiu muito a perda de sua mãe?
Muito, muito. Até porque ela morreu jovem, com 65 anos quase. Ela tinha feito teatro, era uma pessoa muito expansiva, gostava de arte, de dançar, tinha muita cultura. Uma pessoa interessantíssima.
Você era mais apegado a sua mãe ou a seu pai?
Muito mais a minha mãe. Digo até que a responsável maior pela formação nossa foi minha mãe, que era uma mulher que tinha cultura. Realmente essa parte da formação mais enérgica, mais segura, era com ela. Quando ela faleceu, eu tinha 40 anos. Mamãe fez teatro até os 30 anos, depois ela deixou.
Em quantos irmãos vocês são?
Somos em oito: seis homens e duas mulheres.
Você gosta de música?
Ah, passo o dia ouvindo música.
Quais são suas músicas prediletas? Clássico, popular?
Clássicos e, dos clássicos, Mozart, que é genial.
Você tem um hobby, fora trabalhar e ouvir música?
Adoro beber e comer bem.
Você gosta da natureza?
Sim, mas não sou ecologista.
Você gosta de viajar também?
Viajar... estou sofrendo muito.
Qual é o país que você mais curte, se identifica?
A França.
Bom gosto. Qual a pessoa que você mais admira no país? Viva ou morta.
Meu Deus! Eu diria que morta: Juscelino Kubitschek. Agora, viva, ninguém.
Eu queria saber um pouco mais das suas relações com Fidel Castro. Que tal é ele? Mandou-me charutos no passado. Foi um bom relacionamento. Ele é muito carismático. Ele é uma figura interessante.
Você é a favor da pena de morte?
Não, sou contra.
Você é machista? Você é a favor do aborto?
Eu acho que as mulheres têm direitos, e elas já sofreram muito no passado por causa da discriminação. Sou favorável ao aborto e sou favorável à eutanásia. As mulheres ainda são discriminadas em alguns países do mundo, mas eu acho que cada dia mais as mulheres devem ter mais expressão dentro do contexto político, empresarial. Sou muito favorável a isso.
Uma lembrança muito triste.
A morte de minha mãe.
Um momento muito feliz.
O nascimento dos meninos.
Você foi seminarista. Conte um pouco dessa fase.
Eu entrei no seminário com dez anos e passei lá seis anos. Uma grande escola onde, além da cultura que você apreende, eu diria que a formação do caráter e da personalidade se sobrepujam até a religiosidade. Eu vivo hoje de um grande aprendizado que tive lá. Isso ainda é importante na minha vida.
Você foi professor de francês também?
Fui, fui professor de latim e francês num colégio do interior.
E quando foi isso? Você se lembra?
Eu devia ter uns 16 anos quando saí do seminário.
E você aprendeu francês no seminário?
No seminário.
Fale um pouco de sua mulher (Elma, morta em 20 de julho de 1994).
Ela é muito forte, tem uma personalidade muito interessante e é espírita. É muito profunda e acha que as coisas na vida acontecem, estão marcadas. Essa convicção da minha mulher tem me ajudado muito.
Quantos anos você tinha quando se casou com Elma?
Tinha 34.
E foi um namoro longo?
Sete anos.
E foi amor à primeira vista? Como você conheceu a Elma?
Eu a conheci na casa de um amigo. A mulher dele era madrinha dela, e daí nós começamos a namorar e tal. Sete anos depois, casamos.
Como foi a sua transição? Você estudou muito na escola católica, como foi a transição para o espiritismo? Quando e o que o levou a isso?
A transição é pequena, porque no fundo, a base do espiritismo é Deus. Talvez a diferença esteja em que, na religião católica, você vai à missa. Eu não vou à missa. Eu não vou à missa de sétimo dia. Agora, a religião espírita aproxima você muito mais de uma realidade do que a própria religião católica. Tanto é que, hoje, a religião católica instituiu as organizações carismáticas exatamente para trazer o povo para a religião católica, mas com base em princípios espíritas.
E isso foi por alguma razão especial?
A Elma contribuiu um pouco. Até porque ela é médium, ela vê e sente.
Elite
O que você acha da elite brasileira?
A elite não ama o Brasil. A elite, se puder, explora o Brasil.
Dá para você se estender um pouco sobre isso? Por que acha que a elite, se puder, explora o Brasil?
O conceito de amar o país, infelizmente, ainda não chegou ao Brasil. Não sei
por quê. Talvez dê para atribuir isso à cultura nacional. Você sente uma diferença muito grande entre o cidadão americano e o brasileiro. Também sente que o político não está fazendo seu papel e, aí, diz, por que só eu vou fazer? Enfim, não sei... Girando.
Qual é a sua maior mágoa no momento?
A má interpretação que a imprensa dá ao meu comportamento.
Você acha necessária uma lei de imprensa no país?
O Brasil precisa ter uma lei de imprensa aproximando-se da lei inglesa mais do que da americana. Porque a lei inglesa é mais séria e coerente. A imprensa está solta. Diz o que quer de você, e não há nenhuma legislação que o proteja. Não conheço nenhum jornalista ou órgão de imprensa que tenha sido punido. A imprensa se instituiu no Brasil como um poder fortíssimo. Vou citar uma frase de Carlos Lacerda, que diz que 'a imprensa é uma arma que constrói e destrói reputações'.
Qual tem sido a atitude de seus amigos, políticos e empresários neste momento? (Pausa) Tenho recebido apoios inesperados e abandonos esperados.
A imagem que você passa é de uma pessoa fria e controlada.
Eu sou muito tranquilo. O que abala as pessoas na realidade é o peso da consciência, o peso de ter feito o que não deveriam ter feito. Como eu acho que não fiz nada de errado, é isso que me dá o controle geral e emocional. Porque, por mais artista, por mais teatro que se saiba fazer, chega um ponto em que você não consegue levar adiante.
E sua família?
A família está sofrendo, e muito. Meu pai, minha mulher e meus filhos.
Antes do governo Collor, você vivia no anonimato. Como se sente agora, no centro da notícia?
É um grande choque. Eu sempre gostei de ser um anônimo rico.
Os fins justificam os meios?
Em que sentido você está querendo dizer?
Vamos lá, do país.
Nenhum país do mundo chega à estabilização sem sofrimento. Agora, é evidente que, para um país de terceiro mundo como o Brasil, esse sofrimento deve ser dosado para que não leve a um caos total que possa redundar numa convulsão social.
De peito aberto
Você se sente só?
Não. Não me sinto só.
Você acha o Collor uma pessoa bondosa?
Ele é bondoso, amigo e é frio também. Acho que cometeu um erro quando abandonou de vez os políticos, não os valorizando. Quando quis fazer, já era tarde.
Ele tem demonstrado solidariedade com você neste momento?
Sim.
Você é feliz?
Sou.
O que é ser feliz para você?
Estado de felicidade é complexo de explicar. Tenho uma família organizada, dois filhos ótimos, uma mulher compreensiva, equilibrada, muito companheira. Esse lado espiritual e material da vida. Tenho tudo isso. Agora, sofrer uma desordem como esta é realmente um fato negativo no processo, mas ele não veio destruir o estado de felicidade espiritual que tenho.
O final
O que é o amor para você?
Amor é muito sublime. É até difícil de definir. É um sentimento tão nobre e tão especial que a definição é muito complexa. Amor a gente sente, né? Mais do que define.
Você tem medo da morte?
Em absoluto, nenhum. Não tenho.
Qual o seu maior medo?
Meu Deus, você me pegou agora. Não tenho medo de nada. Quem não tem medo da morte, não tem medo de nada.
Você não tem medo da morte dos outros, dos amigos queridos?
Eu tenho sentimento, não medo.
Mas não tem medo da perda das pessoas amadas?
Não, pelo seguinte: porque a morte é uma coisa tão natural que você tem que encarar por aí.
Você acredita em outra vida, acredita que estamos em trânsito?
Não tenha dúvida.

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