São Paulo, domingo, 30 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O bem-amado

MARISA ADÁN GIL

Chico César é o nome mais festejado do momento em São Paulo, considerado pela crítica com o sucessor de Caetano
"Os artistas têm mania de ficar ensimesmados. Meu trabalho tem a alegria própria das coisas do Brasil"
Sem perceber, Chico César, 32, virou objeto de desejo. "Um dia, você repara naquele colega sentado ao seu lado e, de repente, se apaixona. Ele não é o mais bonito ou inteligente, mas você descobre outras qualidades: aquele olho vesguinho, aquele jeito de cruzar a perna. Foi o que aconteceu comigo."
São Paulo descobriu Chico César. É o nome mais festejado do momento. O público lota seus shows, a crítica o endeusa como o possível sucessor de Caetano, e as cantoras fazem fila para gravar suas composições. "Estou fazendo o que sempre fiz, não mudei nada", diz César, ainda atônito com o sucesso. Para o cantor e compositor paraibano, o que mudou foi a relação das pessoas com a música brasileira.
"O momento da porrada, do rock'n'roll, passou. Já é possível olhar com carinho para as coisas do Brasil, aceitá-las e glorificá-las."
O público jovem, garante, abriu os braços para a música brasileira. "Antes, só era produto jovem o que tivesse guitarra distorcida, como Sepultura, Titãs, Chico Science. Agora, existe uma brecha para música com letra, melodia."
A mudança, diz, levou cerca de cinco anos. "Começou com os discos 'Curculadô', de Caetano, e 'Parabolicamará', de Gil. Depois, veio o 'Tropicália 2'. A estética desses discos tem muito a ver com a minha."
Influenciar o mundo e ser influenciado por ele: César tomou o lema emprestado do Tropicalismo.
"Eu me coloco sob essa perspectiva, humildemente. As bases já foram lançadas pelos tropicalistas, em 69. Foram eles que primeiro misturaram folclore, música erudita, pop e rock'n'roll."
A superexposição deve aumentar com a inclusão de "À Primeira Vista", o maior hit de César, na trilha de "O Rei do Gado", novela da TV Globo -na voz de Daniela Mercury.
A delicada canção de amor está nos dois discos já gravados por César: "Aos Vivos", álbum de 1995, e "Cuscuz Clã", segundo disco do cantor, lançado pela Polygram há dois meses.
O primeiro era um disco acústico, com voz e violão apenas. Lançado por um selo pequeno, Velas, não tinha maiores pretensões.
"Achávamos que ia rodar no meio", diz o cantor. "Algumas pessoas iam conhecer, um crítico de boa vontade ia falar bem, e só."
Em vez disso, o disco provocou furor entre críticos e músicos. Daniela Mercury, Maria Bethânia, Zizi Possi e Elba Ramalho pediram músicas. A rádio Musical FM (SP), totalmente dedicada à MPB, colocou o disco em alta rotação.
Era o fim de uma espera de onze anos. Desde 1985, Chico César buscava um lugar para sua música em São Paulo.
Naquele ano, o músico nascido em Catolé da Rocha (cidadezinha a 400 km de João Pessoa) havia deixado para trás a Paraíba para tentar entrar na cena underground paulista.
Era o tempo do Lira Paulistana, e ele se agregou à turma de Arrigo Barnabé e Premeditando o Breque.
Conseguiu espaço para shows, mas nada além disso. "O rock estava no auge", lembra. "Não havia abertura para mais um nordestino."
Durante anos, fez apresentações em bares e teatros pequenos, para algumas dezenas de pessoas. "Cheguei a dar show para cinco pessoas, no ALS, um teatrinho da Augusta."
Usou o tempo para descobrir sua real vocação: a canção. "Vi que podia diluir o experimentalismo e fazer um trabalho popular." O melhor exemplo disso, garante, é "À Primeira Vista". Os últimos versos da canção são cantados numa língua estranha, irreconhecível.
"É dadaísmo puro", revela César, que escreveu a música em 92 depois de encerrar uma relação de sete anos.
"Não quer dizer nada. Agora, se eu ainda fosse um artista experimental, podia ter colocado um anúncio no jornal, dizendo: 'compositor ligado à vanguarda paraibana apresenta poemas no MIS...'. Iam aparecer cinco meninas da PUC e duas do curso de semiótica da USP. Em vez disso, está numa canção, e todo mundo canta."
Filho de Macalé
"Aos Vivos" mostrava apenas a face romântica do compositor -ele prefere a palavra "reflexiva". Faltava a dança, o riso, a banda.
No final de 1994, montou o grupo dos seus sonhos, com sopros, metais, percussão. A estréia da Cuscuz Clã foi em um show com Maria Alcina -de quem César era fã. Ela dizia que eu era filho dela com Jards Macalé", conta.
César havia achado o que queria. Durante um ano de apresentações no Blen Blen Club, em São Paulo, lapidaria o som até chegar à pulsação desejada.
"Eu sabia que meu segundo disco ia sair daí", diz o cantor. "Eu queria uma sensualidade mais explícita, um apelo ao corpo."
Decidiu regravar três faixas do anterior, restrito a um público pequeno: "À Primeira Vista", "Mama África" e "Benazir".
"Cuscuz Clã", o disco, uniu, finalmente, o romantismo à dança. "Sempre gostei dos discos de Gilberto Gil, que tinham músicas pulsantes ao lado de canções. Nunca me pareceu contraditório. Eu me espelho nele."
Entre os convidados, estavam o percussionista Naná Vasconcelos, o guitarrista Lanny Gordin e Herbert Vianna, dos Paralamas -outro paraibano ilustre.
"A Daniela mostrou o disco para ele", conta. Encantado, Herbert concordou em emprestar sua guitarra à "Dá Licença M", uma gozação de César com o jeito de falar dos paulistas (m' é uma abreviação do típico "meu").
O humor é outro traço marcante do disco -basta conferir as letras de "Mama África" ou "You, Yuri". Os artistas têm mania de ficar ensimesmados. Meu trabalho tem a alegria própria das coisas do Brasil."
Os cariocas vão conferir esse trabalho em julho, quando César faz longa temporada no teatro Rival. Em setembro, retorna a São Paulo. Até o final do ano, deve excursionar por todo o Brasil.
Disco novo, só em 97. Na gaveta, o compositor guarda cerca de cem composições inéditas.
"Resolvi parar de contar. Mesmo porque, na hora de gravar, você acaba ficando com as mais novas."
Monarquia
Se quisesse, Chico César poderia se dedicar à carreira de compositor -para cantoras. Nem mesmo ele consegue entender tamanho interesse das mulheres pela sua música.
"Talvez seja porque eu falo de coisas duras, cruéis, com uma sutileza que é própria do feminino. Minhas músicas de amor não tratam a mulher apenas como objeto de desejo."
O assédio se repete nos shows: as meninas costumam se aglomerar na beira do palco. "Acho que é uma relação de encantamento pela linguagem", diz.
É impossível falar de Chico César sem citar Gil ou Caetano. Mas o cantor não gosta da palavra "sucessor".
"É um raciocínio meio monárquico", diz César. "Não se trata de esperar a chegada de um sucessor, mas sim de alguém que possa dialogar com a arte deles. Se esta pessoa for eu, já é de bom tamanho."
Por enquanto, os três só tiveram encontros breves. Com Gil, César falou há muito tempo, quando ainda era jornalista. De Caetano, que encontrou no Prêmio Sharp, ouviu um "precisamos conversar".
O que viria por aí? Parcerias, colaborações, shows conjuntos? "Talvez seja muita presunção minha, mas não é improvável. Eles me visitaram muito cedo, quando eu tinha oito anos. E já colaboraram muito com meu trabalho, sem ter de sentar para escrever. Eu quero esse encontro."

Texto Anterior: Alerta geral
Próximo Texto: Férias, aah!; 5 X Comédia; Nos Limites da Fotografia
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.