São Paulo, quarta-feira, 3 de julho de 1996
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A mula de três cabeças

HERBERT DE SOUZA

Fernando Henrique e seu governo não são de leitura imediata e simples. É complicado entender esse mar de contradições dentro de um só governo. São tantas as faces, os fatos e os discursos do presidente que se pode perguntar se estamos diante de um governo e de um só presidente, ou de vários.
Para entender Fernando Henrique e seu governo é necessário identificar as tendências ideológicas e políticas mundiais recentes e olhar para a história de nosso país e do próprio personagem que hoje encarna a Presidência. Vejo FHC e seu governo como uma mula de três cabeças. Cada cabeça é real e tem raízes em nossa história, tem sua expressão dentro do governo e na sociedade.
A primeira delas é a cabeça democrática, progressista. O FHC sociólogo, teórico da dependência, militante da oposição ao regime militar, consciente das desigualdades sociais e da necessidade de se erradicar a miséria, controlar o mercado e democratizar o Estado. Ela é a cabeça das lutas democráticas da sociedade brasileira e deu muitos votos ao presidente na última eleição.
A segunda cabeça é a estatista autoritária, da velha tradição política brasileira, dos tempos coloniais quando o Estado era tudo, e a sociedade, nada, quando tudo dependia do presidente. Essa cabeça está presente também tanto na direita quanto na esquerda, são filhas de uma matriz comum. Nesse sentido, FHC é filho de Getúlio Vargas e irmão de Brizola. Como o foram Tancredo Neves e tantos generais de nossa história civil e militar.
A terceira e última cabeça é a liberal e neoliberal, que professa fé incondicional no mercado, quer o Estado mínimo, se abre decididamente à globalização, é mais internacional que nacional e não gosta do nacionalismo, socialismo ou qualquer projeto que não passe pelas sagradas leis do mercado. Essa é a cabeça das privatizações, do mercado dos interesses e das ambições, do jogo ardiloso com o Legislativo e da negligência em relação ao social, à exclusão e à miséria.
Se essas três cabeças existem em FHC, os reflexos das três se notam nos diferentes ministérios. Elas também se replicam na sociedade, em que cada vertente vê o presidente que quer ou critica o governo que não gosta. Ou olhamos o governo FHC por cima, com uma perspectiva que englobe todas as suas dimensões, ou estaremos condenados a nos debater sempre com uma das suas cabeças. Enquanto as demais seguirão seu rumo.
A sequência de escândalos, de propostas de reforma, de negociações com o Congresso e de declarações e discursos do presidente mostra essas três cabeças em ação, se debatendo e gerando contradições que deixam os analistas perplexos e a sociedade confusa. Afinal, quem é esse presidente? Que cabeça predomina? Qual será o resultado do jogo entre Estado, mercado e sociedade?
Para alguns, uma cabeça é a verdadeira, a que manda, e as outras são falsas. Armadilhas ideológicas utilizadas no jogo do poder por um presidente inteligente, que tem intimidade com as três, que sabe fazer o discurso de cada uma delas com competência. Para outros, as três cabeças existem como possibilidades, como virtualidades que desafiam a sociedade e os atores políticos.
A verdade é que poderiam ser feitas diferentes listas das ações e dos discursos de cada cabeça: o discurso social do presidente, as ações sociais de alguns ministérios, a política de privatizações, a ênfase globalizante das políticas econômicas, a firmeza na política de estabilização, as negociações com os fisiologistas, os socorros ao sistema financeiro, ao lado da falta de recursos para a reforma agrária e outras questões fundamentais e urgentes.
Pode-se dizer que existe uma disponibilidade do presidente para as três cabeças, mas não será ele quem se decidirá por uma delas. Caberá a todos os segmentos da sociedade a luta para decidir qual deverá ser a cabeça dominante do governo. Não existe Estado possível sem cabeça ou com três cabeças. A opção final é inevitável, assim como o fim do governo, se essa decisão não for feita a tempo. A democracia não depende essencialmente do governo, mas da sociedade. Governos caem, sociedades, não.
A esta altura, seria possível dizer que a política econômica do governo obedece fundamentalmente à cabeça neoliberal, que a política social incipiente de alguns ministérios obedece à cabeça democrática e que outras políticas são uma mistura de estatismo não-declarado e autoritarismo envergonhado. Se é a economia quem manda, a conclusão é imediata: a cabeça que predomina é a neoliberal. Essa é uma cabeça global, mundial e ainda dominante, mas em processo de decadência tanto na América Latina (vide México, Venezuela, Argentina) como na Europa da outrora poderosa Margaret Thatcher.
Todo esse equilíbrio instável de uma mula desorientada pode tropeçar, no entanto, na pedra da ética e da reação indignada da sociedade. E esse dia pode estar mais próximo do que se imagina.

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