São Paulo, domingo, 7 de julho de 1996
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Parem o mundo que eu quero saltar...

ROBERTO CAMPOS

A gobalização é um tema que vem bem a propósito nos dois anos do Plano Real, que recolocou o país no palco econômico mundial como importante protagonista potencial. Passamos para o grupo das sociedades em que as pessoas podem projetar suas expectativas por um bom horizonte de tempo, em vez de viverem presas a instantes desconexos, sobre um chão movediço.
Não podemos mais fugir das novas realidades internacionais pela tangente de fórmulas com prazo de validade esgotado. Mas, com isso, acaba o efeito de anestesia que nos impediu de sentir os custos de pertencer ao mundo de hoje. É compreensível o desconforto de algumas pessoas. A globalização é um movimento oposto ao que preponderou na economia internacional no período de entre-guerras, quando se verificou uma progressiva compartimentalização política do espaço econômico mundial, e as economias individuais foram ficando mais dirigistas e fechadas. Isso contrariou uma tendência inerente ao capitalismo industrial, já clara desde o começo do século passado, e dominante desde a década de 1840. Não é por outra razão que o século 20 foi chamado por Paul Johnson de "coletivista".
Pruridos protecionistas sempre existiriam em todos os tempos e em todas as economias. Empresas tranquilas no mercado não apreciam muito a concorrência. Em todas as partes haverá sempre aquele tipo de interesses que podemos chamar de "corporativos', que tendem a estratificar-se em torno de centros de poder. A economia medieval era um mosaico de peças mais ou menos isoladas, sob uma infinidade de regras locais e, por isso mesmo, muito pouco eficiente. A transição para o mundo moderno foi, de fato, um complicado (e penoso) processo de "globalização", cujo desdobramento final seria o sistema "liberal", que acompanhou a grande expansão do capitalismo industrial a partir da segunda metade do século 19.
A transição das economias pré-industriais para o capitalismo industrial, em fins do século 18, provocou terríveis deslocamentos sociais. Todos os ciclos de transformações tecnológicas, mudanças de fontes de recursos, ou preferências do mercado, penalizam alguns agentes econômicos e premiam outros. A "destruição criativa" de que falou Schumpeter é, no papel, um fascinante objeto de análise. Na realidade concreta, como todo processo seletivo, dói em muita gente.
Não é de hoje que os deslocamentos produzidos pelas transformações da economia despertam angústia e resistência. Em defesa da "oikonomia", a gestão da grande casa patriarcal, Aristóteles, há 24 séculos, investiu não só contra Hipódamo de Mileto, que propunha uma forma rudimentar de planejamento e de estímulo à inovação tecnológica (um precursor do "desenvolvimentismo"...), mas também contra a "crematística", isto é, a economia monetária. O estagírita reputava-a dissolvente e geradora de imoralidade, por contraste com a ordem da economia doméstica. É claro que a economia monetária teria de parecer assustadora a quem pertencia a uma forma de vida tradicional. Ao tornar possível dar preço a tudo, a moeda abalava as antigas hierarquias de valores. A igreja medieval abominava o juro e desconfiava do lucro. E quem não se lembra do que Marx disse do "fetichismo da mercadoria"? O Mahatma Gandhi queria o retorno à vida frugal dos "ashram", aldeias em que se plantava e tecia com as próprias mãos. Dos monges do século 10 aos "wandervõgel" alemães de 1910, e aos "hippies" de 1960 (passando por toda a variadíssima gama de pessoas idílicas e místicas que querem parar o mundo e saltar), há uma linha comum de preferências. E Marx, intelectualmente o mais robusto dos socialistas, acreditava que, pela abolição da propriedade privada dos meios de produção, os homens eliminariam os conflitos de interesses e entrariam num estado de solidariedade fraterna, com plena satisfação de suas necessidades materiais.
Fugir do "jogo de todos contra todos" na arena do mercado, e rejeitar o consumismo de bens materiais são colocações que, quando autênticas, merecem respeito. Não é assim, porém, que o mundo tem funcionado, nem o que a maioria das pessoas querem. Em todas as partes elas preferem consumir cada vez mais, acumular bens, e estar sempre experimentando novidades. Tentativas de torná-las virtuosamente socialistas custaram muito caro (só na Rússia, de 30 milhões a 50 milhões de vítimas) e satisfizeram tão pouco os seus supostos beneficiários que estes, ingratamente, chutam o traseiro dos beneficentes socialistas assim que encontram uma oportunidade.
A globalização "financeira" se traduziu em mudanças, tanto operacionais como institucionais. Houve três transformações: a revolução telemática criou o mercado de 24 horas; surgiram novos atores, como os fundos mútuos de investimentos e os fundos de pensão; criaram-se novos instrumentos como a securitização e os derivativos. No plano institucional, o FMI, que nascera em 1944 com 44 membros, tem hoje 181. No comércio, a globalização assumiu várias formas: o surgimento de blocos regionais, como a União Européia, o Nafta e o Mercosul; a explosão das multinacionais; o conceito da "fábrica global" com gerentes e trabalhadores de um país, tecnologia ou financiamento de outros, para vendas a terceiros. Um embrião disso já existia (e funcionou bem), no velho liberalismo econômico de antes da Primeira Guerra Mundial. Isso explica porque alguns batizam o atual movimento globalizante de "neoliberalismo". Há um outro aspecto que não pode ser esquecido. É a globalização dos perigos e soluções. Sabe-se hoje que questões como a poluição, o efeito estufa, as drogas, o terrorismo e a proteção de direitos humanos são cada vez menos suscetíveis de tratamento em escala puramente nacional.
A partir de 1974, a economia brasileira passou por um progressivo fechamento. Em vez de partir para a eficiência interna e a competitividade externa (que a crise mundial tornava, ao mesmo tempo, oportuna e necessária), preferiu acomodar-se em reservas de mercado, protecionismo crescente, subsídios e privilégios, construindo-se um Estado burocrático-corporativo inepto e corrupto. A abertura externa que ultimamente vem sendo feita é punitiva para certos setores, tanto mais quanto o Real vem sendo seguro apenas pelas pernas dos juros e da taxa de câmbio, sem as reformas administrativa, previdenciária e fiscal que permitiriam completar a normalização da economia. Mas não é só nos nossos setores menos competitivos que dói. Em todos os grandes países há berreiros dos que estão apanhando da concorrência. Especialmente na Europa, onde persistem resíduos corporativos fossilizados (embora sem a calhordice clientelista do Estado brasileiro), mil e um dispositivos neoprotecionistas aparecem, fantasiados de defesa de meio ambiente, da justiça social, das condições trabalhistas ideais, da distribuição de renda, e quanto mais pretexto aparece na hora, unindo-se a ONGs de lá e aos bobos de cá.
Assim como não adianta curar os males das armas de fogo voltando para o arco e flecha, não há remédio senão experimentar a cura da liberdade. Especialmente no caso do Brasil, que tem enormes dimensões, massa crítica e abundância de recursos ociosos, dispondo de um formidável potencial de crescimento que lhe permite compensar, muito rapidamente, quaisquer sacrifícios impostos pela maior integração da economia global. Resistir à globalização de mercados é perder eficiência e sacrificar o crescimento, cujo componente mais dinâmico é o comércio internacional. Resistir à globalização financeira significa menor capacidade de absorver investimentos. O nacionalismo, no passado, serviu ora para mobilizar energias ora para provocar conflitos. Hoje só resta seu potencial de conflito.

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