São Paulo, domingo, 7 de julho de 1996
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Um atleta da narrativa

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

É melhor do que vocês pensam. Comparado a outros autores de massa, como Sidney Sheldon ou Danielle Steel, escritores que jamais se deixam confundir com a literatura, Stephen King é mesmo um "mestre", como dizem as contracapas, um Henry James da ficção de suspense e horror. Comparado a Henry James -mas não seria justo fazer uma comparação dessas, porque os dois habitam mundos diferentes, galáxias aparte no universo da literatura. Basta dizer que ninguém, hoje, escreve mal melhor do que ele.
A produtividade de King é impressionante: 24 romances, de "Carrie" (1974) a "Rose Madder" (1995); mais cinco antologias de contos e oito roteiros de filme; além de cinco outros romances como "Richard Bachman" e um livro de não-ficção ("Danse Macabre"). Esses livros já são um elemento tão integrado à cena americana quanto os cowboys e os seriados de polícia; façanha maior do que parece, para um país que não é exatamente livresco. Entre os filmes adaptados de seus livros estão os antológicos "Carrie, a Estranha" e "O Iluminado" de Kubrick ou, mais recentemente, "Misery" e "O Despertar de um Sonho".
Há um certo gênero de naturalismo sobrenatural, um gênero misto, entre o realismo hiperbólico das violências e o sentimentalismo das fantasias, que tem em E.A. Poe o grande precursor americano e em King seu mais popular descendente. É um gênero alegórico, dramatizando temores primários, do "outro lado" da nossa existência cotidiana. Em tempos modernos, de uma literatura industrial, com direito a merchandising, esses temores se casam com a agenda política: assédio sexual (Crichton), violência contra menores (Grisham) ou, como em "Rose Madder", a liberação da mulher.
Não pode haver dúvida do caráter calculado dessa escolha, o que, por si, não constitui desvantagem. King, que já escreveu bons ensaios de não-ficção, incluindo uma resenha de Mary Louise Alcott (Mais!, 4/2/96) e um memorável artigo sobre beisebol (na revista "The New Yorker", em 1990), pode não ser um escritor especialmente engenhoso, mas também não tem nada de ingênuo.
O número de alusões -à mitologia, à literatura, ao cinema- que não podem senão passar despercebidas pela maior parte dos leitores, assim como as planejadas coincidências e repetições do texto, fazem de um romance como "Rose Madder" um livro duplo: folhetim popularesco e romance ambicioso de autor. Nem sempre as ambições são levadas a termo; e, quando isto não acontece, o resultado é o que se chama kitsch. Neste domínio, King não tem rivais, e "Rose Madder" atinge requintes de sofisticação. A palavra "madder" conjuga os temas desse romance, cujo título poderia ser "A Mulher de 40 Anos". "Madder" é a cor púrpura da gota de sangue que Rose descobre no lençol, na manhã seguinte a mais um espancamento pelo marido, Norman Daniels, policial que há 14 anos tortura rotineiramente a mulher. O inspetor Norman provoca um aborto em Rose, porque a encontra lendo um romance; como se Charles Bovary tivesse reencarnado num uniforme azul e com temperamento de touro.
"Madder" também é o aumentativo de "mad", sinalizando de uma vez só a loucura e a raiva de Rose. Etimologicamente, "mad" vem de um verbo grego que significa "cortar em pedaços, mutilar", outro sentido apropriado para os sofrimentos de Rose, até o advento de "Rosie Real", a mulher liberada, que descobre em si a raiva como princípio positivo de feminidade, mantida apenas sob controle pelas paixões amorosa e maternal.
A raiva confunde-se com a fúria trágica no capítulo central do livro, uma atordoante queda no inferno, meio pesadelo, meio "realidade", que combina elementos da mitologia grega com uma viagem para dentro de um quadro, à maneira de Alice. Trata-se, no caso, do mito de Deméter, que desce ao Hades para buscar Prosérpina, raptada por Plutão. Mãe e filha se misturam em Rosie Real e Rose Madder, seu duplo infernal; ao inspetor Norman caberá ironicamente o papel de Erínias, o touro no centro do labirinto, cujo nome remete às Fúrias, divindades protetoras da ordem contra o caos e vingadoras dos crimes contra a família. Que o touro, no caso, também seja a máscara que o alucinado Norman está vestindo, em sua perseguição sanguinária da mulher, só acentua a condição ambivalente, entre o imaginado e o real, entre o sonhado e o vivido, que dá o tom dos livros do autor. "A mente desperta conhece o conceito do sono, mas para o sonhador não há despertar, não há mundo real nem qualquer sanidade; existe apenas o gritante tumulto do sono", comenta o narrador no prólogo, dando evidência do que King não poderia escrever se quisesse.
A maior parte do tempo, sabiamente, talvez, para seus propósitos, ele não quer; e o estilo oscila entre a imitação dos dialetos coloquiais e uma linguagem que lembra as más novelas vitorianas, paródia involuntária de uma velha "literatura feminina". Se as personagens são caricaturas, sua linguagem é a caricatura de uma caricatura; e, em seus piores momentos, o livro arrisca se perder no que King define como um de seus maiores medos: a autoparódia (na introdução a "Nightmares & Dreamscapes", que sai em agosto).
Tudo isto vem a serviço de um inabalável realismo. Cada história e frase, aqui, cada uma das milhares de observações e descrições, está denotando o real; ou aquilo que Roland Barthes chamava de "efeito de realidade", calcado paradoxalmente sobre a própria ausência dos significados. Mesmo os mitos, então, vêm assumir a função de um realismo mais realista ainda, de uma vida "interior" para lá do limite indecifrável da realidade.
Mas talvez seja preciso ler o livro com uma dose maior de humor -humor negro que seja. É no mínimo irônico, para não dizer cômico, escutar as palavras de Hamlet, "o tempo está fora dos eixos", na boca do inspetor Norman, um sádico de papelão, com tendências homossexuais recalcadas. (Não por acaso ele se chama "Norman", nem-homem, "Daniels", anagrama de "denials", negações.) É igualmente irônico encontrar Rosie no papel do Rei Lear, castigado pela tempestade. (Não por acaso essa é a Rosie "Real", outro anagrama.)
Por outro lado, não sei se é possível ler com esse mesmo humor as cenas de estupro anal com uma raquete de tênis, ou do inspetor esmigalhando com a mão os testículos de uma testemunha. São os abjetos do desejo, como diria Kristeva; mas nenhum discurso crítico seria capaz de elevar a dignidade estética desse romance. Há uma boa dose de sadismo autoral nessa literatura de sensações; mas é um sadismo de efeitos, cuja única e dúbia virtude é manter o pulso da narrativa.
Pulso e impulso é o que não falta. King é um mestre da cadência interrompida, do suspense prolongado interminavelmente em centenas de páginas. Pena que a exuberância do ritmo não se traduza em exuberâncias de afeto e palavra. No final das contas, é um livro tímido, e tanto mais quanto se pretende um livro sobre a mulher e sobre a raiva e a loucura.
Se o livro não alça vôo, é porque ao atletismo da narrativa não corresponde a mobilidade de afetos -para não falar de pensamentos, mas esta, afinal, não é uma literatura de idéias. A loucura sádica do inspetor Norman e a raiva liberadora de Rose não têm, de fato, nenhum suporte na prosa. Mas Stephen King é um construtor habilidoso de pré-roteiros de filme; e os filmes, no caso, acabam suprindo as nuances que os livros não têm.
Falei no início que não faria comparações com Henry James, e os leitores de romance policial já deviam saber que não vou cumprir a promessa. É o romancista moribundo em "The Middle Years" quem resume o credo poético de James: "Cada um de nós trabalha no escuro -faz o que pode- oferece o que tem para oferecer. O resto..." Não tenho certeza do "escuro" para um romancista tão friamente profissional como King, mas o demais é verdade. E não é pouco, aliás, o que ele faz e oferece: entretenimento para alguns milhões de leitores pelo mundo afora. Mas o que lhe falta, o "resto" de que falava James, é naturalmente o principal e é precisamente o tema frustrado de Rose Madder e de todos os seus livros: "O resto... é a loucura da arte".

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