São Paulo, domingo, 7 de julho de 1996
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"O Rei do Gado" engole o cinema nacional

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Muito se tem comemorado nos meios artísticos e entre os chamados formadores de opinião um suposto "renascimento" do cinema brasileiro. O fenômeno seria anterior mesmo à indicação de "O Quatrilho" ao Oscar, lembrança que só viria ratificar, de forma inequívoca e com a chancela dos pais da matéria, que voltamos a ter, sim, senão um Cinema Novo, ao menos um novíssimo cinema.
Por outro lado, nesses mesmos meios que saúdam o recente "boom" da sétima arte em terras tão áridas, há muita gente falando em crise -alguns mais exaltados preferem falar em morte- da telenovela brasileira. Renascimento do cinema, fim da novela -eis dois bordões que a mídia não cansou de repisar nos últimos meses.
Esta Folha chegou a promover recentemente um debate sobre "O Futuro da Telenovela no Brasil", maneira eufêmica de decretar a sua morte anunciada.
Sem nenhuma vontade infantil de ser simplesmente "do contra" ou substituir um cadáver por outro, seria o caso de perguntar se não estaria ocorrendo exatamente o inverso. Como é regra entre nós, será que também essa análise não está com os sinais trocados?
A comparação que se impõe é entre o atual êxito de "O Rei do Gado" e algumas produções cinematográficas recentes, tais como "Carlota Joaquina", "Terra Estrangeira", "Jenipapo" e "O Guarani", além do "Quatrilho".
À primeira vista amalucado, o contraponto tem no entanto base concreta. Nos filmes como na novela, o que se vê é a busca da construção de uma imagem do país, sem que isso signifique em todos os casos adesão ao realismo social.
Em relação ao cinema, alguém já notou com razão que essa busca criou, paradoxalmente, um ponto de vista "externo". Ao equiparar-se em termos técnicos ao similar estrangeiro e conseguir seu atestado de maioridade, o cinema brasileiro se desnacionalizou, patina em sua própria irrelevância enquanto vai conquistando mercados, justamente no momento em que estaria apto a reatar com o fio da meada nacional, cuja ponta perdida continua a ser Glauber Rocha.
Talvez por estar livre de qualquer compromisso com o passado, não tendo outro juiz além da audiência, a teledramaturgia possa criar uma novela como "O Rei do Gado", cujos resultados inesperados acabam ocupando essa espécie de vácuo criado pela miragem do cinema nacional.
Mas qual é, então, a força da novela que falta ao cinema?
Entre a primeira e segunda fase de "O Rei do Gado" há uma descontinuidade formal que salta aos olhos e deve ter causado mal-estar em muita gente. Talvez ela não seja gratuita e esteja aí o segredo.
O andamento da primeira fase foi épico. Marcada por extrema concisão, sucessão frenética de acontecimentos, excelência técnica e direção impecável dos atores, a história andava a toque de caixa.
Tudo sugeria que os personagens estavam construindo um país na medida em que faziam a si mesmos. Qualquer sacrifício, até morrer na guerra pelo país, era um ato justificável, pleno de sentido. Ao entrar na sua segunda fase e chegar aos dias atuais, a novela perde seu status épico, torna-se menos cinematográfica, ganha um tom mais prosaico, cotidiano -enfim, se "noveliza", o que não deixa de fazer sentido.
O clima agora é de orgia e fim de festa: o milionário frustrado, sua mulher adúltera e infeliz, o filho mimado resvalando a delinquência, o senador corrupto e sua filha desmiolada, tudo aponta para um ambiente terminal de degradação e promessas não cumpridas.
A contrapartida social desses personagens sintomáticos são os sem-terra e os bóias-frias, encarnados na personagem de Patrícia Pillar e na dupla vivida por Jackson Antunes e Ana Beatriz Nogueira, decalques diretos dos líderes do MST, Zé Rainha e Diolinda.
Como essa história ainda vai longe e os compromissos com a audiência são implacáveis, é difícil prever se "O Rei do Gado" será capaz de sustentar até o fim a expectativa que criou ou, pelo contrário, descarilha na primeira curva e cai no dramalhão, unindo à força latifundiários e bóias-frias.
Seria quase um crime, sobretudo depois que Patrícia Pillar, em sua primeira aparição, marcou seu personagem numa cena inesquecível, acompanhada pela bela canção de Zé Ramalho.

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